Blog DIREITO LATO SENSU, de autoria de Álaze
Gabriel.
Autoria:
Gustavo Vitorino Cardoso - Mestrando em direito
constitucional na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
RESUMO
Este estudo aborda o crescente uso do direito
comparado na racionalidade das decisões dos tribunais constitucionais. Tema
extremamente interessante e atual, a aproximação do direito constitucional ao
direito comparado é ilustrada a partir de casos julgados em Portugal, Estados
Unidos e África do Sul e que receberam atenção especial da doutrina, destacando-se,
nomeadamente, os contornos históricos e jurídicos caracterizadores desses
ordenamentos jurídicos. O primeiro objetivo perfaz a verificação do alinhamento
do Supremo Tribunal Federal à tendência comparativa, o que é feito mediante a
análise materialmente direcionada da sua jurisprudência colhida no sítio
oficial. A segunda etapa tem como escopo uma explicação possível para o
problema intrínseco à interpretação/concretização de regras e princípios
constitucionais, lançada na fundamentação de uma decisão com base em elementos
apurados em outra ordem jurídica, tarefa essa que é levada a efeito com apoio
na caracterização do denominado estado constitucional. Todas as etapas cumprem
a função mais geral de indagação acerca do papel que a comparação de direitos
tem alcançado no constitucionalismo do presente.
Palavras-chave: direito constitucional; direito comparado; Estado
constitucional; tribunais constitucionais; Supremo Tribunal Federal.
INTRODUÇÃO
Não é recente o reconhecimento do intenso
aproveitamento das utilidades fornecidas pelo direito comparado para fins
teóricos ou eminentemente doutrinários, cuja consequência mais saudável foi e
continua sendo o desenvolvimento de abordagens contextualizadas de problemas
comuns a vários sistemas jurídicos. Mas se percebe uma mudança nos domínios da
comparação: atualmente, a argumentação comparada faz-se presente na
racionalidade das decisões dos tribunais superiores de vários países,
notadamente daqueles tribunais que precipuamente devem zelar pelo texto
constitucional, "nova" realidade essa que não deixa de originar
indagações de várias ordens e acaba mesmo por convidar à reflexão. Afinal, se
os textos constitucionais conformam parte primordial da ordem jurídica do
Estado e da sociedade a que se referem, qual é o fundamento para se registrarem
no bojo da fundamentação de uma sentença elementos apurados em outra(s)
ordem(ns) jurídica(s) a respeito de uma questão constitucional? Estaria o
Supremo Tribunal Federal brasileiro alinhado a essa tendência
interpretativo-concretizadora? Qual é a função que a comparação jurídica tem
logrado manter no constitucionalismo do presente? Essas são as principais
questões a que nos propomos enfrentar.
No presente estudo, as respostas a essas indagações
são perseguidas em um percurso de quatro etapas. Primeiro, são feitas algumas
elucidações a respeito do direito comparado, a sua origem, o seu
desenvolvimento e uma breve consubstanciação teórica, chegando-se à expressão
"comparação de direitos" como melhor representante do seu propósito
fundamental. Em seguida, procuramos ilustrar a realidade
judicativo-constitucional de Portugal, Estados Unidos e África do Sul, através
das decisões mais comentadas pela doutrina especializada.1
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é discutida em seguida, para
demonstrar que os ministros brasileiros também se voltam à tendência
comparativa. Na busca do fundamento teórico para a virada rumo à comparação
jurídica, apresentamos a teoria da Constituição como ciência da cultura do
jurista alemão Peter Häberle, que inculca a noção da comparação jurídica como
quinto elemento de interpretação-concretização constitucional.2
1 BREVES ANOTAÇÕES SOBRE O DIREITO COMPARADO3
Entendido por parte da doutrina como evolução do
processo sistêmico e resultante da Escola Histórico-evolutiva (MAXIMILIANO,
2003), o Direito comparado era visto como moderníssimo até meados do século
passado, à altura do império da Escola da Exegese. Invocado prioritariamente no
campo da hermenêutica e menos na organização jurídica, esse processo de
interpretação se desenvolveu, especialmente, sobre as tramas do direito
privado,4
por se mostrar mais próspero ao postulado de aplicação uniforme, de modo que os
encantos do novo processo pareciam permitir um direito privado comum de toda a
sociedade civilizada (MAXIMILIANO, 2003).
Na sua origem, via-se que os povos cultos da época
em condições análogas de regime político, organização social e cultura
serviam-se dos mesmos organismos para estabelecer a mesma função com vistas ao
mesmo fim. Assim, a pretensão de impingir ao estudo do fenômeno jurídico um
verdadeiro caráter científico fez que os jurisconsultos se ocupassem do direito
comparado, diferenciando-o, outrossim, da simples "legislação
comparada" (MAXIMILIANO, 2003, p. 109), que já era percebida, mas como
algo menor do que a ciência completa que se pretendia com a comparação.
No seu desenvolvimento, a disciplina passou a
desempenhar papel cultural de grande valia. O estudo dos "direitos
estrangeiros" constituiu fonte inegável de enriquecimento cultural, com
notória utilidade para o melhor conhecimento do direito nacional e para o seu
aperfeiçoamento (DAVID, 1986). Notou-se que problemas e soluções de outros
sistemas poderiam esclarecer as complicações domésticas. Assim:
[...] as vantagens que o direito
comparado oferece podem, sucintamente, ser colocadas em três planos. O direito
comparado é útil nas investigações históricas ou filosóficas referentes ao
direito; é útil para conhecer melhor e aperfeiçoar o nosso direito nacional; é,
finalmente, útil para compreender os povos estrangeiros e estabelecer um melhor
regime para as relações da vida internacional. (p. 3)
Nesse contexto, a interdependência das nações e as
mostras da solidariedade que envolve o gênero humano, tendo se convolado em
fatos evidentes no mundo contemporâneo - o mundo agora como um só, sem o
isolamento de outrora - acabaram por impor, tanto aos políticos quanto aos
economistas e aos juristas, uma nova visão dos problemas que lhes dizem
respeito (DAVID, 1986).
Entendida como verdadeira ciência5
ou ainda apenas como um método (CANOTILHO, 2003), o direito comparado passou a
se identificar com a pesquisa de um modelo melhor, conduzida mediante a análise
temporal e materialmente recortada do modelo estrangeiro, as suas semelhanças e
dessemelhanças (DANTAS, 1997) e, assim, avessa à mera especulação pendente de
objetivo acerca dos padrões jurídicos de diversos ordenamentos, o que
constituiria puro empirismo ou um exercício erudito (SACCO, 2001). Enfim, a
comparação voltou-se para problemas práticos.
A tendência que intentamos demonstrar a seguir é o
intenso uso do direito comparado, pelos juízes constitucionais nacionais, como
método de interpretaçãoconcretização (e de realização) constitucional,6
fenômeno que se desenvolve em várias intensidades e compreende doutrina,
legislação e decisões estrangeiras. É importante destacar que o recurso a
elementos exógenos já existia, por exemplo, nas colônias. A novidade é que
atualmente não mais se verifica a recepção, e sim o diálogo enriquecedor do
próprio direito interno, em que se percebe que os juízes citam outros sistemas
não só para preencher as lacunas ou para tratar de algo novo tal como era feito
no período colonial, mas para "find out how other judges have responded
when faced with a comparable issue" (SLAUGHTER, 2003, p. 197).
A seguir, com a ressalva de que, para nós, a ideia
perseguida pelo comumente denominado direito comparado é mais bem representada
pela expressão "comparação de direitos" - já que a dialética almejada
não ocorre somente a partir da norma em si, mas também em razão do substrato
social, econômico e cultural no qual ela se aloca -, ilustraremos a matéria em
foco a partir de estudos de juristas em torno da jurisdição constitucional de
Portugal, dos Estados Unidos e da África do Sul e, por último, apresentaremos
alguns casos julgados pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro.7
Em seguida, demonstraremos a importância da abertura das possibilidades
interpretativas no nível constitucional a partir das noções desenvolvidas por
Peter Häberle e sua teoria da Constituição como ciência da cultura, tudo para
chegarmos em condições de, ao final, identificar elementos importantes no
tocante ao argumento comparado na atividade decisória própria dos tribunais constitucionais.
2 O ARGUMENTO COMPARADO NA LAVRA DO TRIBUNAL
CONSTITUCIONAL PORTUGUÊS
Desde a sua institucionalização formal,8
o Tribunal Constitucional Português (TCP) sempre se posicionou numa linha
favorável ao uso do argumento comparado,9
apesar de inexistir no ordenamento jurídico10
qualquer determinação legal nesse sentido.11
Isso se deu, em primeiro lugar, a fim de galgar legitimação material dentro do
quadro de poderes e esquema judiciário no qual o TCP foi implantado, para o que
contribuiu uma argumentação mais ampla e conexa com os avanços doutrinários.
Ademais, em um contexto em que o controle de constitucionalidade das normas do
tipo misto complexo (CANOTILHO, 2003) se revelou como fonte de conflitos entre
as várias instâncias do Poder Judiciário, o recurso ao elemento comparado
contribuiu para o reconhecimento da autoridade do próprio Tribunal em
consolidação, bem como para evitar exageros de autorreferência em um país de
pequenas extensões e de pouca idade na vida liberal-democrática.
A notável abertura do TCP verificada no plano
interpretativo material externo não se limitou aos primeiros anos da sua
existência, persistindo até a atualidade. O resultado foi a sua entrada na
conjuntura de participação de Cortes constitucionais na construção de
orientações comuns, tendencialmente universais, processo no qual o órgão
judicial se torna, ao mesmo tempo, sujeito ativo e passivo, embora com
desigualdades no fornecimento dos parâmetros. Além disso, a jurisprudência
portuguesa afirma a comparação como um meio para melhor compreensão das
questões e das normas em exame e também como caminho para aprimorar a qualidade
das suas próprias decisões, mantendo especialmente normas constitucionais e
supraconstitucionais de outros países europeus como sustentáculos de uma
espécie de tertium comparationis.12
Se em um primeiro instante a análise
jurisprudencial permite aduzir que as citações estrangeiras são empregadas mais
como componente acessório do que como exigência de fundamentação das decisões,
verifica-se que em algumas decisões o Direito comparado é levado em conta
inclusive na parte conclusiva da sentença.13
Tanto é verdade que, em decisão recente, o dado comparado surgiu como
importante para a afirmação de que a norma portuguesa referente ao direito à
revisão de sentenças não gozava de "fundamento suficientemente relevante
na óptica constitucional para a solução normativa impugnada",14
obrigando a norma impugnada a ceder diante do resultado da interpretação
comparada.
O TCP privilegia a comparação dos sistemas
jurídicos tidos como próximos, eminentemente o alemão, muito em razão do
reconhecimento de uma sobreposição substancial entre os ordenamentos.15
Os sistemas jurídicos mais citados são o alemão, o espanhol, o italiano, o
norte-americano, o francês, o belga, o austríaco, o inglês e, finalmente, por
razões histórico-culturais, o brasileiro (ORRÚ, 2006),16
sendo que os quatro primeiros são mais seguidos em termos de justiça
constitucional.
Finalmente, o firme propósito do TCP em utilizar o
argumento comparado é acompanhado do uso também constante do direito
internacional, especialmente a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
estabelecendo, mormente nos julgados mais recentes, relações firmes com as
sentenças proferidas pela Corte de Estrasburgo, que opera no âmbito da CEDU, de
modo a quase fixar um ponto de referência irrenunciável e que acaba por
demonstrar a inclinação pluralista dos juízes da Corte portuguesa (ORRÚ, 2006).17
3 O DIREITO COMPARADO NA SUPREMA CORTE DOS ESTADOS
UNIDOS
Nos Estados Unidos, país marcado por uma forte
tradição jurisprudencial sempre mais próxima do unilateralismo de suas próprias
fórmulas jurídicas e com alta valorização dos precedentes jurisprudenciais, os
métodos de trabalho da Corte Suprema parecem ter sofrido as consequências do
contexto da afirmação plena do modelo político, econômico e cultural hasteado
pelo país e que culminou na globalização, de modo que parte dos justices passou
a empregar nas suas decisões fontes jurisprudenciais estrangeiras, embora de
forma esporádica e intermitente, geralmente de países europeus ou de Estados
partidários do sistema da Common Law (FERRARI, 2006).
Ainda que ao alvedrio de qualquer determinação
legal no tocante ao uso da comparação, a abertura aos materiais externos se
aprofundou sensivelmente a partir do fim do século XX e início do século atual,18
especialmente em temas como a moral sexual e a pena capital, mas sempre
destinada ao combate de alguns componentes da própria Corte. É paradigmático a
esse respeito o caso "Printz versus Estados Unidos",19
de 1997, no qual se discutiu a constitucionalidade do "Brady Handgun
Violence Prevention Act", que instituiu um sistema nacional de
controle de armas de fogo. Contraditado a respeito da sua compatibilidade com o
federalismo e a vontade dos founding fathers, manifestou-se no caso o
juiz Stephen Breyer,20
que também em nome do juiz Stevens suscitou o federalismo suíço e alemão, bem
como a própria experiência europeia, recordando sempre que ele estava
consciente de que o objeto de interpretação era a Constituição norte-americana,
mas que a comparação se fazia importante para abrir o leque de possibilidades
de soluções a problemas comuns. Tal posicionamento sofreu duras críticas do
juiz Antonin Scalia, com sua "nationalist jurisprudence"
(FERRARI, 2006, p. 322), sob o argumento de que a comparação seria importante
apenas no momento de redigir a Constituição, jamais na sua interpretação.
Mas já antes a comparação de direitos havia alçado
lugar de destaque no judiciário constitucional norte-americano, na época do
chamado "constitucionalismo repulsivo" ("aversive
constitutionalism").21
Nas décadas de 1940 e 1950, o país foi diretamente confrontado às teorias e
práticas da Alemanha nazista e da União Soviética. Assim, o anseio voluntarista
de articular normas capazes de frontalmente distinguir os usos e as práticas do
país daqueles modelos totalitaristas em voga na Europa contribuiu para um longo
percurso liberal da Suprema Corte, o que ajudou a fortalecer, inclusive, os
direitos e as liberdades civis, mormente no campo penal.
A história constitucional estadunidense recente
remete também ao caso "Roper versus Simons",22
de 2005. A sentença proibiu a pena capital aos menores de 18 anos, com fulcro
na maturação da noção dos "standards of decency", presente na
sociedade norte-americana, nas literaturas psicológica e criminológica, estas a
demonstravam a ineficácia da medida. Ocorre que foram jungidas à decisão
inúmeras legislações e jurisprudência estrangeiras, bem como normas de direito
internacional, com o fito de demonstrar que a prática não se coadunava com a
experiência comum no mundo, bem como que ela se mostrava contrária aos próprios
valores culturais nacionais. Novamente, o juiz Scalia reagiu contrariamente ao
manejo de argumentos comparados, por entender que tal argumentação estava sendo
utilizada para colocar de lado as práticas difusas na história do país.
O interessante é notar que a adoção dessa metódica
suscitou reações tanto negativas quanto positivas. Aquelas ensejaram a
reprimenda de congressistas que propuseram leis contra o manejo do direito
estrangeiro nas sentenças.23
A recepção positiva deu-se eminentemente na doutrina, do que são exemplares as
teorizações de Ackerman (1997) acerca do "world constitucionalism";
de Tushnet (1999) sobre as possibilidades do constitucionalismo comparado; de
Harold Koh (2004) sobre "community standards"; e, finalmente,
de Anne-Marie Slaughter (2003) sobre a "global community of courts".
4 O ARGUMENTO COMPARADO NA PRÁTICA DA CORTE
CONSTITUCIONAL SUL-AFRICANA
Examinando a realidade jurídica do maior país do
continente africano, Rinella (2006) mostra que o uso do direito comparado pelos
juízes da Corte constitucional possui legitimação expressa em razão do artigo
39, 1,24
da Constituição da República da África do Sul de 1996, o que alça a comparação
jurídica à condição de instrumento de interpretação e concretização da carta de
direitos e das liberdades fundamentais. Naquele país, os juízes promovem
especialmente a comparação com os ordenamentos jurídicos que serviram de fonte
para os textos constitucionais recentes (a Constituição provisória de 1993-1994
e a atual, acima referida). Rinella aduz que em algumas decisões não se faz
possível distinguir quando a abordagem se dá com foco nas leis estrangeiras ou
casos estrangeiros, o que permite aos magistrados se moverem sabiamente entre o
"Law in the books" e o "Law in action".
É ilustrativa a sentença do caso "Zuma versus
Estado", a primeira a tratar da interpretação do texto constitucional
provisório e que versou sobre a distribuição do ônus de provar a espontaneidade
de uma confissão nos termos da lei processual penal em face da presunção de
inocência estatuída pelo regramento constitucional, na qual já se sentiu forte
influência do direito canadense tanto no estudo técnico (two stages,
balanceamento) quanto na metódica da interpretação constitucional.25
É válida também a referência ao caso "Makwanyane", julgado em 1995,
em que se controverteu a inconstitucionalidade da pena de morte e fez que o
Tribunal analisasse o catálogo de direitos e liberdades, a pena de morte e a
cláusula de limitação dos direitos a partir de vários outros ordenamentos
jurídicos. Em suma, pode-se afirmar que as principais fontes de comparação se
referem aos sistemas jurídicos canadense, norte-americano e alemão,
preponderando a utilização racional e equilibrada do argumento comparado, sem
vinculação da ratio decidendi.26
É importante observar que a África do Sul, país de
língua inglesa e que tem experimentado nos últimos anos, desde que se soltou
dos grilhões do apartheid, uma fase de profunda transição rumo à
abertura democrática, fomentada também por uma renovação de seus quadros
judicantes,27
apegou-se às experiências jurídico-constitucionais de Estados de cultural
ocidental, de tradição democrática e vigilantes na proteção efetiva dos
direitos fundamentais, adotando nomeadamente o modelo alemão da Grundgestz
(RINELLA, 2006), mas o fez sem perder de vista as suas especificidades
internas, uma autolimitação forjada pelos próprios magistrados diante da norma
constitucional que apenas lhes faculta o manejo de material externo.28
Também se percebe que a comparação, além de contar
com a inédita permissividade legal já referida, possui em seu favor a própria
formação cultural e científica dos juízes,29
o que faz Rinella (2006) considerar a possibilidade de que a formação dos
membros do Tribunal os tornou mais propensos a considerar o direito de outras
jurisdições na construção da própria Constituição.
5 O USO DA COMPARAÇÃO DE DIREITOS PELO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL
A análise da jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal30
permite afiançar que o direito comparado é manejado pelos ministros,
volvendo-se como instrumento enriquecedor das decisões, embora ele não seja
decisivo na formação da jurisprudência, e, assim como se dá nos Estados ditos
"constitucionais" da atualidade, à exceção da África do Sul, como
visto acima, não exista qualquer regramento, seja legal ou regimental, para o
exercício da comparação pela Corte, fato que não tem impedido a consciente
articulação da realidade dos casos com os direitos estrangeiros.
Tanto a doutrina como a jurisprudência de outros
países são constantemente invocadas nos votos proferidos pelos ministros da
Corte Suprema brasileira, principalmente os votos exarados pelos ministros
Gilmar Ferreira Mendes, Celso de Mello, Joaquim Barbosa, Ellen Gracie e Eros
Grau,31
que o fazem como forma de qualificação do debate e de aprofundamento das
análises e argumentações desenvolvidas nos julgamentos, elidindo que o uso da
comparação seja considerado mera citação decorativa. O resultado pode ser
observado em decisões interessantemente fundamentadas e ricas culturalmente,
alcançando, por conseguinte, a própria melhora da jurisprudência interna.
O STF mantém em seu sítio na rede mundial de
computadores uma área específica destinada à publicação das traduções, nas
línguas inglesa e espanhola, de resumos da sua jurisprudência mais
significativa, o que tem o condão de promover o intercâmbio de informações
legislativas e jurisprudenciais entre os diversos países. Ademais, é nesses
casos mais significativos, entendidos aqui como polêmicos,32
que o direito comparado é mais habitualmente empregado. Não se trata de
fenômeno muito recente no Tribunal, tendo crescido nos últimos anos o número de
decisões que trazem a comparação no seu bojo.33
Recentemente, por ocasião da discussão do exercício
do direito de greve por parte dos servidores públicos civis,34
o argumento comparado ajudou a garantir a evolução do tema na jurisprudência do
Tribunal, tanto que o ministro e relator para o caso, Gilmar Ferreira Mendes,
fez constar da ementa do acórdão que:
[n]a experiência do direito comparado (em especial,
na Alemanha e na Itália), admite-se que o Poder Judiciário adote medidas
normativas como alternativa legítima de superação de omissões
inconstitucionais, sem que a proteção judicial efetiva a direitos fundamentais
se configure como ofensa ao modelo de separação de poderes (CF, art. 2º).
O recurso ao argumento comparado mostrou que a
experiência alemã sobre a declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de
nulidade, tendo em vista especialmente as omissões legislativas parciais, assim
como as sentenças aditivas do direito italiano, denotava que, em se tratando do
direito de greve dos servidores públicos civis, estava-se diante de hipótese na
qual a omissão constitucional reclamaria uma solução diferenciada.
No voto que proferiu, o ministro Celso de Mello
teve oportunidade de destacar os modelos normativos do direito de greve dos
servidores públicos no âmbito comparado, demonstrando, com tal exposição, o
gritante e injustificado atraso do legislador brasileiro no concretizar da
norma constitucional.
Outro caso de grande importância para o
constitucionalismo brasileiro e no qual a comparação de direitos ganhou
relevância foi o que discutiu a condenação do escritor e sócio de editora por
delito de descriminação contra os judeus por ter publicado, distribuído e
vendido ao público obras antissemitas, delito ao qual foi atribuída a
imprescritibilidade prevista no artigo 5º, XLII, da Constituição Federal.35
Na decisão do caso, a extensa referência a
instrumentos internacionais, especialmente a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, foi acompanhada da comparação jurídica mediante a análise e a
articulação da lei francesa nº 90.615/90; do artigo 416 do Novo Código Penal da
França; da lei espanhola contra o racismo de 1995; do artigo 240 do Código
Penal português; da Lei Gaysott, da França, de 1990; do "Licensing Act",
da Inglaterra, de 1695; da Emenda nº 1 da Constituição Americana de 1787; da
"Race Relations Act", de 1976. Também houve o registro de
inúmeras decisões estrangeiras: os casos "Estados Unidos versus
Lemrick Nelson", da Corte de Apelação da Califórnia, de agosto de 1999;
"Mandla e outro versus Dowell Lee e outro", da Câmara dos
Lords, na Inglaterra, de 1983; "Shaare Tefila Congregation versus
Cobb" (US 615), da Suprema Corte norte-americana, de 1987;
"Lüth", da Corte Constitucional Alemã (BverfGE 7, 198), julgado em 15
de janeiro de 1958; "Livro sobre a Guerra", da Corte Constitucional
Alemã (BverfGE 90, 1-22), julgado em 11 de janeiro de 1994; "Soldados
assassinos", da Corte Constitucional alemã (BverfGE 93, 266-312), julgado
em 10 de outubro de 1995; "Romance Pornográfico", também da Corte
Constitucional alemã (BverfGE 83, 130), julgado em 27 de novembro de 1990;
"Terminiello versus Chicago" (337 US 1), da Suprema Corte
norte-americana, julgado em 16 de maio de 1949; "R.A.V. versus City
of St. Paul" (505 US 377), da Suprema Corte, julgado em 22 de junho de
1992; "Texas versus Johnson" (491 U.S. 397), também da Suprema
Corte norte-americana, julgado em 21 de junho de 1989; "Publicação cômica
contra o povo judeu", julgado pelo Tribunal Constitucional espanhol,
sentença 176/1995, de 1995; "Schenck versus United States"
(249 U.S. 47, 52), com o voto do Juiz Oliver Wendell Holmes Jr., proferido em
1919; "Virginia versus Black et al.", da Suprema Corte dos
Estados Unidos; e, finalmente, o caso "Jersild versus
Dinamarca", julgado pela Corte Europeia de Direitos Humanos em setembro de
1994.36
Na Questão de Ordem na Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental nº 54/DF, novamente através da lavra do ministro Gilmar
Ferreira Mendes, ponderou-se a respeito da "Roe versus Wade",
da Suprema Corte dos Estados Unidos; de inúmeras decisões da Corte alemã e da
Corte Constitucional italiana; da Constituição de Weimar; dos artigos 123,
inciso I, e 178, inciso II, da Constituição de Bonn; do artigo 282, parágrafo
4º, da Constituição portuguesa de 1976; dos artigos 33, e 44, I, "A",
da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional espanhol; do artigo 44, parágrafo
90, incisos I e II, da Lei Orgânica da Corte Constitucional alemã; do capítulo
3, artigos 2213-1 a 2213-4, do livro 2 do Código de Saúde Pública da França; do
artigo 140 da Lei Constitucional da Áustria; do artigo 134 da Constituição da
Itália; e da Lei Constitucional de 9 de fevereiro de 1948, da Itália.
Todo esse esforço se deu, em parte, para demonstrar
que a maior parte dos Estados constitucionais assegurava aos seus respectivos
tribunais constitucionais competência para aferir a constitucionalidade das
leis pré-constitucionais em face da Constituição vigente e, também, para
reprochar uma introdução acrítica no ordenamento brasileiro da cláusula de
subsidiariedade na forma como existe no direito alemão (recurso constitucional)
e no direito espanhol (recurso de amparo), para fins de admissibilidade da
arguição de preceito fundamental nos termos da Lei nº 9.882/99.
No mesmo caso, a ministra Ellen Gracie frisou o
valor da comparação jurídica por se estar diante de um instituto novo, em boa
parte influenciado pela experiência constitucional europeia, enquanto o
ministro Carlos Veloso citou apenas a legislação francesa para demonstrar a
complexidade do caso submetido à apreciação do STF.
A habitualidade com que o STF se mune da comparação
não é, atualmente, confrontada pelos juristas atentos aos trabalhos do
Tribunal. No tocante à doutrina, é importante frisar o constante uso de estudos
estrangeiros nas decisões da Corte brasileira, especialmente os provenientes da
ciência jurídica espanhola, alemã, italiana e francesa.37-38
Pode-se, assim, afirmar que o argumento comparado
não é de modo algum ignorado pela prática judicativa. Pelo contrário, pois é
explorado a fundo pelos juízes constitucionais de vários países, tendência da
qual os juízes do STF não se afastam, ainda que neste a comparação não seja de
fundo, isto é, não venha acompanhada da discussão sobre os alicerces
contextuais da lei, do precedente ou da doutrina estrangeira. Respondida
positivamente a pergunta acerca da disposição brasileira à comparação jurídica
em sede constitucional, resta-nos aprofundar no exame dela e perscrutar um
fundamento hábil para que se justifique o registro e a articulação, no bojo da
fundamentação de uma sentença, de elementos de outras ordens jurídicas a
respeito de uma questão constitucional.
6 UM FUNDAMENTO POSSÍVEL: A ABERTURA DE
POSSIBILIDADES E O DIREITO COMPARADO COMO QUINTO ELEMENTO DE INTERPRETAÇÃO
CONSTITUCIONAL. A TEORIA DA CONSTITUIÇÃO COMO CIÊNCIA DA CULTURA
Antagonicamente, exige-se que a Constituição de um
país se valha concomitantemente de duas pretensões: de estabilidade e de
dinamicidade (CANOTILHO, 2003, p. 1.435).39
Entretanto, tal antagonismo dilui-se à medida que se percebe que ele é apenas
aparente, porquanto é muito desejável que a Constituição, na sua condição de
ordem jurídica fundamental do Estado e da sociedade (HÄBERLE, 2003, p. 165),
ofereça-se tanto à rigidez naquilo que a estrutura - a fim de garantir já aqui
a sua sobrevivência -, quanto à abertura ao futuro e às inevitáveis
movimentações sociais, políticas e culturais - coroando o seu movimento de autoconservação.
Nessa sua condição de ordem aberta40
é que assenta a noção da Constituição como ordem-quadro, de característica
notadamente não exaustiva (CANOTILHO, 2003, p. 1.436), desenvolvida mediante
processo público em uma sociedade aberta e favorável ao pluralismo social,
econômico e político, tendo diante de si - e com a tarefa de assimilá-los - os
fenômenos organizativos supranacionais, bem como a própria globalização,
econômica e jurídica, aos quais se acrescenta a pluralidade cultural interna.
Nessa mesma senda, sabe-se que preceitos
constitucionais, ainda que escritos em idênticos termos, não necessariamente
têm o mesmo significado, variando tanto em razão do tempo quanto do espaço. A
cultura parece ser, portanto, o elemento que explica essa variação. Por outro
lado, as contribuições de cada comunidade, em cada etapa histórica, tendem a
incorporar-se à cultura compartilhada, sem prejuízo de que cada conjunto social
no exercício de interiorização das experiências exteriores o faça incluindo os
seus próprios elementos específicos, gerando, com isso, novidades as quais se
incorporam ao intercâmbio crescente de padrões culturais, o que torna os
Estados constitucionais cada vez mais homogêneos e codeterminados, de maneira
que eles podem ser concebidos como um produto multicultural (VALADÉS, 2003, p.
xxxvi). Nesse diapasão, a cultura pode ser observada como verdadeiro fator
constitutivo da Constituição (ZAGREBELSKY, 2006, p. 370).
Ademais, não se pode perder de vista que, segundo
Häberle (apud MENDES, 2009) "es gibt keine Rechtsnormen, es gibt
nur interpretierte Rechtsnormen. Interpretar um ato normativo nada mais é
do que colocá-lo no tempo ou integrá-lo na realidade pública".41
Daí decorre a importância de melhorar a interpretação jurídica como elemento
constitutivo da própria concretização constitucional.
E, por estarem os juízes vinculados a essa ordem
viva, acreditamos que a função deles, especialmente daqueles que ocupam as
posições cimeiras dos sistemas jurisdicionais dos países, é decisiva e
preponderante para o reclamado processo de interpretação e densificação de
regras e princípios constitucionais, bem como da própria evolução
constitucional, o que pode ser levado a efeito especialmente através do direito
comparado. De fato, independente do sistema invocado, compete ao Judiciário a
função de intérprete supremo da Constituição (MAXIMILIANO, 2003, p. 255).
A leitura atenta da jurisprudência estrangeira
confirma que os juízes nacionais têm, de fato, deixado de afivelar as máscaras
de meros aplicadores da lei para se tornarem guias da dinamização da
Constituição, dado que eles conservam na atualidade a última palavra em matéria
de interpretação (COELHO, 1998, p. 188). A crise do constitucionalismo, na qual
também se verifica uma relativização do estatismo em matéria de fontes do
direito (HÄBERLE, 2003, p.128), lança luzes sobre a atuação
jurisdicional-constitucional em um tipo de Estado constitucional cultural cuja
arma mais disseminada está a ser o direito comparado, em razão da sua vocação
ao estabelecimento de comunicação entre as várias Constituições e à melhor
apuração da decisão para o caso concreto (CANOTILHO, 2003, p. 1.214).
Para viabilizar a ideia de um Estado constitucional
cultural, Häberle propõe, no que é apoiado por Pablo Lucas Verdú (1998), uma
teoria da Constituição como ciência da cultura. É o próprio jurista alemão quem
condensa em dez teses as ideias apresentadas em seu livro, cujo objetivo é
apresentar as diretrizes para uma teoria constitucional apoiada na cultura
(HÄBERLE, 2000).
A teoria da Constituição como ciência da cultura
possui o mérito de primeiro ter compreendido a necessidade de pôr em causa os
métodos tradicionais de estudo do direito constitucional, fomentando a
necessidade de uma análise realista do novo papel dos juristas na sociedade contemporânea,
globalizada, em particular a importância da jurisprudência dos tribunais
constitucionais e dos processos de integração. A disciplina como produto da
cultura característica de uma era se faz compreensível como "parte de la
cultura" (HÄBERLE, 2003, p. 21), deixando no passado o seu entendimento
como uma disciplina puramente técnica, o que permite identificar um novo modelo
de Estado constitucional, diferente do Estado liberal do século XIX.
Desafivelando-se do tecnicismo de outrora, a teoria da Constituição como
ciência da cultura destaca métodos e princípios que se encontram em clara
oposição ao conceito que considera a lei constitucional como voltada,
sobretudo, para o estudo da hierarquia das fontes e para a reconstrução
voluntarista da lei constitucional. A teoria cultural traz em consideração a
evolução atual das Constituições liberais-democráticas (não apenas as
europeias), observando os níveis textuais no sentido estrito (ou seja, as
disposições das Constituições diferentes em vigor), mas sem olvidar da análise
de tais sistemas em todas as manifestações da cultura, incluindo a filosofia, a
literatura e a arte.
Abrem-se os critérios de interpretação, o que
ocorre, na proposta de Häberle, à medida que a sociedade se mostra pluralista,
negando a existência de numerus clausus de intérpretes constitucionais
(HÄBERLE, 2003, p. 150), diante do que se afirma que, no atual estágio de
desenvolvimento de muitos sistemas jurídicos nos quais se verificam sociedades
abertas de intérpretes constitucionais, as Constituições representam o saldo de
um processo plural, que não termina com a sessão de encerramento da Assembleia
Constituinte, mas permanece constantemente aberto.
Segundo essa concepção, o círculo de intérpretes da
Constituição deve ser amplo, com o fim de abarcar não somente as autoridades
públicas e os intérpretes formais nos processos de controle de
constitucionalidade, mas todos os cidadãos e grupos sociais que de uma ou outra
forma vivem a realidade constitucional (MENDES, 2009, p. 67). É por isso que
afirma Häberle (2003, p. 150): "quien vive la norma, también la
interpreta".
Häberle (2003, p. 124) ressalta que na sociedade
aberta de intérpretes da Constituição não é necessário enfatizar a noção
dogmática de "fonte de direito", por referir-se esta unicamente ao
nível textual, devendo ser considerados todos os demais elementos que
contribuem para a compreensão do desenvolvimento do direito constitucional
contemporâneo, proporcionando um significado adequado aos diversos fenômenos
concorrentes no processo de concretização constitucional, carecendo destacar o
recurso aos clássicos considerados em seus contextos42
e a referência às mesmas noções na memória dos constituintes e dos intérpretes
da Constituição.
Ao adotar a visão de que o direito constitucional
possui natureza não técnica, mas intimamente cultural, torna-se necessário
destacar ser essa verdadeiramente uma escolha metodológica no estudo da
disciplina. Häberle propõe, de fato, um uso mais significativo de textos e de
seu conteúdo valorativo, a fim de compreender a dinâmica do direito vivo. Mas o
autor considera ser preciso romper com os conceitos tradicionais com os quais a
doutrina tem abordado os textos constitucionais. Os cânones de interpretação
não devem ser manejados como uma técnica para buscar a vontade do constituinte,
mas para fazer emergir conceitos de avaliação e as orientações culturais que se
afirmam na sociedade contemporânea e que constituem a base de toda a legislação
constitucional existente. Assim, a cultura revela-se na essência do direito
constitucional e da Constituição, devendo esta, portanto, ser vista como uma
expressão do estado cultural de um povo. Assim vistas as coisas, é óbvio que a
Constituição não pode ser identificada mais como um ato estatal somente. As
Constituições escritas revelam-se níveis textuais da cultura constitucional,
com a consideração de ser a autêntica Constituição a Constituição viva.
A Constituição do Estado constitucional convola-se,
assim, em uma Constituição integrada por numerosos elementos, sobrepondo-se a
todos a dimensão cultural, atingindo até mesmo a tradicional doutrina acerca
dos elementos do Estado.
Da leitura da doutrina que estabelece a noção
cultural da Constituição, percebe-se o apreço por todas as culturas do planeta,
não sendo ela de modo algum limitada às experiências constitucionais europeias,
deixando transparecer uma preferência pela cultura política liberal-democrática
que se funda sobre uma vinculação aos pressupostos valorativos e culturais da
filosofia política ocidental, especialmente a alemã e em parte a
norte-americana, assim como pelos clássicos que se aprofundaram nos valores
culturais. Essa opção permite compreender o conteúdo do modelo de Estado
constitucional que remete os juristas contemporâneos ao projeto de futuro para
o mundo. Este seria um modelo em que concorreriam um elemento normativo, no
sentido de um dever-ser que exige primeiramente a manutenção de algumas das
realizações da cultura jurídica e política ocidentais, um elemento realista, em
que se consideram as condições objetivas que limitam as ações dos protagonistas
do direito constitucional, e, finalmente, um terceiro elemento, representado
por aquilo que Häberle (2003, p. 301) chama de "pensamento das
possibilidades".
Este último, representativo de um pensamento
constantemente aberto a alternativas, parece ser o mais significativo para a
compreensão de todo o conceito de Constituição aberta. Trata-se de um elemento
que remete à mesma noção de uma cultura jurídica que assume o pluralismo como
princípio fundamental da ordem constitucional e ajuda a entender a
normatividade constitucional a partir de um processo dialético de contínua
transformação do direito constitucional, o qual permite à normalidade -
realidade - se converter em normatividade e permite à norma se volver em
normalidade.
Compreende-se, portanto, haver na teoria da
Constituição como ciência da cultura um otimismo evolutivo acerca do direito
constitucional, pautado na promessa de uma expansão gradual do modelo de Estado
constitucional a partir da convicção de que tal modelo oferece uma noção mais
aberta e pluralista da cultura constitucional, inspirado sempre por um
reconhecimento da dignidade humana.
Importa sublinhar que tal concepção oferece uma
leitura da experiência constitucional contemporânea em moldes não formalistas,
subvertendo a tradicional primazia do Estado sobre a Constituição, atenta aos
conteúdos valorativos dos desenvolvimentos mais atuais da disciplina, dando azo
a reflexões sobre a cultura e a história constitucional sem pretensão de servir
como condicionante dogmático, sendo ela verdadeiramente aberta ao futuro.
Vista a cultura como fator essencial para compreensão
das experiências constitucionais, abre-se também o espaço para uma nova análise
dos níveis textuais, agora de uma forma diferente daquela experimentada pela
exegese positivista. Na teoria cultural, mostra-se imprescindível a consciência
da importância da cultura para o direito constitucional, consciência essa que
impede que se veja nos textos a única e verdadeira fonte de direito, garantindo
menos rigidez e mais flexibilidade no trato constitucional, tudo como resultado
da sociedade aberta de intérpretes constitucionais, na qual todas as opiniões,
todas as correntes jurídicas (mesmo as das minorias) possuem significado
jurídico. É por isso que a preferência é pela utilização da expressão fontes de
direito pontuada por interrogações e entre comillas (HÄBERLE, 2003).43
Igualmente importante para a compreensão do novo
tipo de Estado constitucional pluralista, a abertura às alternativas pressupõe
um modo diverso de pensar a lógica jurídica e a argumentação. O pensamento das
possibilidades se baseia na abertura às alternativas, ao que se opõe a lógica
de um dever-ser absoluto: a dúvida é bem-vinda, favorece a possibilidade de
pensar em função de alternativas contrárias a qualquer absolutismo e sempre
aceita a possibilidade do "outro". A consideração da alternativa deve
ser real, o que exige do Estado constitucional o fornecimento de meios
procedimentais para tanto.
Essa ideia da Constituição como realidade complexa,
como processo aberto que se desenvolve em múltiplos níveis e garantidor da
participação de um número cada vez maior de pessoas, unida à convicção de que
nenhuma ordem constitucional pode ser concebida hoje como uma estrutura fechada
ao exterior, implica em alterações no próprio método de estudo da disciplina.
Para tanto, o direito comparado aparece com toda a força para o estudo dos
diferentes ordenamentos jurídicos, a fim de possibilitar a compreensão das
diversas experiências jurídicas, fazendo ascender a imagem das trocas culturais
e mudanças sociais no mundo contemporâneo.
O direito comparado aparece, assim, com mais
importância do que a construção de um sistema jurídico geral de conceitos
jurídicos o qual busque fornecer valores cuja essencialidade seja intangível,
mormente quando se verifica que somente através da comparação e da análise
histórica dos diversos valores constitucionais é que se alcança uma consciência
da essencialidade. Com efeito, cotejar as experiências jurídicas no espaço é
também uma maneira de pensar sobre o direito que se caracteriza por se manter
aberto às alternativas, que não considera a ciência jurídica como um conjunto
compacto de questões a propósito da vontade do legislador de um único país.
Com base nesse método interpretativo, Häberle
insere nas suas construções a comparação dos textos normativos e apresenta
indícios de um processo mais profundo de difusão da cultura constitucional e de
alguns modelos constitucionais, mostrando também que a mera comparação de
textos é ineficiente, clamando a imprescindibilidade de que se alcance uma fase
ulterior de comparação constitucional substancial: os contextos culturais, o
que permite ao autor designar a sua teorização como "ciência jurídica dos
textos e da cultura" (HÄBERLE, 2003, p. 83).
Na sua obra, Häberle aprecia especialmente a
riqueza das formas dos textos constitucionais, a multiplicidade das possíveis
Constituições, a sua complexidade, inclusive a linguística e variedade de
funções, insistindo em explicar o seu próprio método de estudo por não ignorar
os riscos de que seu pensamento se alie a uma leitura com ares dogmáticos.
Antes de tudo, o método comparado no Estado constitucional convida à reflexão
sobre a diversidade dos sistemas jurídicos e o significado das experiências
jurídicas, confrontando-os entre si, assim como intenta aprofundar a análise
nos diversos contextos culturais como pano de fundo para a descoberta da razão
das mutações que sofrem as instituições (tanto no espaço quanto no tempo), reagindo
ao desafio da proposição de uma Constituição que seja modelo único e universal.
A consideração do método comparado como quinto
elemento de interpretação no Estado constitucional como marco metodológico se
deve à conclusão de que aquele se apresenta como a via mediante a qual as
diversas Constituições podem comunicar entre si, possibilitando que se adquira
para cada uma e todas elas uma maior eficácia, em virtude da conformação do
Estado constitucional (FERNANDÉZ SEGADO, 2003, p. XLIII).
Bem se vê, portanto, que a doutrina da teoria da
Constituição com fulcro na ciência da cultura, para além de propor a teoria que
embasa o seu pensamento, também se preocupa com o procedimento que viabiliza a
prática das suas postulações teóricas, oferecendo, com isso, não apenas o
caminho epistemológico, mas também e, principalmente, a fórmula de
reconhecimento do contexto real em que as conquistas teóricas da doutrina
poderão ser vivenciadas.
Para Häberle (2003), a comparação jurídica deve ser
praticada como comparação de culturas:
Sin importar lo que se piense de
la sucesión de los métodos tradicionales de la interpretación, en el Estado
constitucional de nuestra etapa evolutiva la comparación de los derechos
fundamentales se convierte en 'quinto' e indispensable método de la
interpretación. (p.
162)
Fernandéz Segado (2003), ao anotar que as reflexões
científico-culturais oriundas do direito constitucional comparado podem servir,
em parte, para esclarecer e justificar as diferenças e, também, para encontrar
elementos comuns, observa que Häberle acredita que o comparativismo
constitucional pode produzir frutos imensuráveis tanto no plano da exegese, das
modificações pela interpretação, quanto na própria realidade circundante da
Constituição. Segado registra que, dessa forma, o direito comparado de cunho
científico-cultural se revela especialmente adequado na seara das políticas
legislativa e constitucional, apresentando-se também como de grande utilidade
no âmbito da simples interpretação do direito constitucional vigente (direito
positivo).
É preciso ter em mente que a expressão direito
comparado se refere, antes de tudo, a um modo de conceber o direito como
experiência real baseada na consideração de suas possíveis alternativas,
destacando uma atenção mais incisiva à historicidade de toda a construção do
pensamento jurídico. Por outro lado, não se trata de estabelecer afinidades
ideológicas entre ordenamentos constitucionais, mas sim de utilizar o método
comparado para iluminar o significado valorativo dos diversos modelos institucionais,
sem pretender anular a diversidade cultural entre os países. Pela teoria da
cultura, é fundamental que se volte a uma comparação valorativa entre
institutos, instrumentos conceituais, modelos de solução de controvérsias
jurídicas, restabelecendo a exigência de um rigoroso estudo comparado dos
diversos ordenamentos jurídicos, com o fim de aprofundar o significado da
diversidade e das orientações valorativas. É útil a esse propósito realçar que
o direito constitucional do nosso tempo tem, antes de tudo, a necessidade de
manter abertas as expectativas que nutrem o próprio direito desde a Revolução
Francesa: esperança, tolerância e responsabilidade (HÄBERLE, 1998).
Considerada a definição de Häberle de Constituição
como espelho da herança cultural de um povo e fundamento de esperanças, ela
pode representar um bom ponto de partida para a reflexão sobre a utilização do
método comparado no direito constitucional, já que pressupõe a renúncia a
qualquer pretensão de imposição de uma única doutrina científica sobre a
disciplina. Com base nisso, o jurista alemão ressalta que a amplitude dos
direitos fundamentais não depende tanto dos enunciados textuais quanto do seu
sucessivo desenvolvimento, indicando que os caminhos para a ampliação da tutela
dos mesmos podem se dividir em uma via de ampliação da comparação no interior
do próprio ordenamento e em outra na qual a comparação se volta à variedade dos
exemplos dos demais Estados constitucionais.
A exigência de ter em conta métodos de estudo mais
abertos e fundados no recurso à comparação de ordenamentos jurídicos se
desenvolve sobre planos diferentes daquele de tipo lógico-dedutivo, já que a
mesma ideia de comparação exclui a simplificação e a eliminação da diversidade,
com também exclui a utilização de esquemas universais ou métodos formalistas no
estudo do direito. Excluída está a adoção de qualquer dogma jurídico como
absoluto e incontroverso, restando fundado o método comparativo na exigência de
concretização que necessariamente o deve inspirar.
Comum a todos os Estados constitucionais, o tema
dos direitos fundamentais postula uma identificação de tais direitos, o que
constitui uma atividade cognitiva que repousa eminentemente nos juízes
nacionais, realidade que só aumenta a utilidade dos estudos comparados para
esses, não somente sobre os modelos argumentativos e sobre as categorias
conceituais utilizadas pela jurisprudência, mas também para facilitar a
percepção das diversas culturas jurídicas e antropológicas implicadas em cada
um dos modelos de tutela dos direitos fundamentais.
Não se pode perder de vista que a consagração da
comparação jurídica como quinto método de interpretação no contexto do Estado
constitucional se revela como uma consequência histórica da própria doutrina da
interpretação jurídica. Isso porque, se na Escola Histórica de Savigny era
natural que o método histórico de interpretação tivesse lugar de destaque, da
mesma forma se apresenta lógico que, no paradigma de uma teoria do Estado
constitucional, o método comparativo se revele proeminente, considerando que
ele constitui a via pela qual as diversas Constituições nacionais podem
comunicar entre si, enriquecendo-se mutuamente e aumentando o leque de vias
interpretativas.
Por fim, é importante registrar que o método
comparativo, proposto como caminho metodológico adequado para a concretização
das Constituições neste século recém iniciado, não implica em desconsideração
das peculiaridades nacionais, em prol de uma ordem universal, mas exige a busca
constante, de maneira aberta e sensível, do particular e do individual em
contraponto com o paradigma do "outro". O que fica dessa lição é que
o excesso, a favor ou adversariamente à comparação jurídica, pode afastar o
magistrado da conjuntura social, econômica e cultural em que se insere o dilema
jurídico-constitucional em julgamento, evidenciando, com isso, a possibilidade
de decisões "ruins" também sob o pálio da comparação.
Conclui-se, portanto, que a proposta häberliana de
estudar mais a fundo o direito constitucional, fazendo referência aos seus
contextos culturais, é de grande interesse para todos os juristas, indo ao
encontro do Estado constitucional cultural. Da mesma forma, a proposta favorece
o pensamento das possibilidades, a visão do outro, sendo importante frisar que,
a partir de uma perspectiva comparada no ato interpretativo, os textos
constitucionais poderão prover normas para a esperança, assegurando espaços
para a tolerância, para as alternativas e para o pluralismo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar de a termos construído de uma forma
nitidamente resumida e sem qualquer pretensão de sistematização,44
entendemos que a exposição evidenciou o amplo respaldo de que goza a comparação
jurídica na racionalidade das Cortes daqueles países unidos por um conceito
ocidental de Constituição (SOARES, 1988). É necessário frisar que a realidade
não se resume ao apresentado aqui, sendo experimentada em muitos outros tribunais
que têm a função precípua de zelar pela ordem constitucional.45
Dos casos analisados, conclui-se que a comparação
de direitos é muito mais utilizada e melhor trabalhada pelos tribunais
português e sul-africano em relação ao que se constata da realidade brasileira
e, em nível ainda maior, dos Estados Unidos, mas isso não retira qualquer valor
à comparação jurídica e cultural para a evolução constitucional em tempos de
Estado constitucional, comum a todos esses países.
No Brasil e nos Estados Unidos, o argumento
comparado é, consoante os casos analisados, inservível a qualquer pretensão de
vinculação da ratio decidendi, sendo manejado apenas no nível de obter
dictum, ou seja, constitui-se em um valioso reforço, mas complementar ou
retórico. Portanto, o produto da comparação não perfaz o argumento nuclear da
decisão. Ainda assim, a comparação tem altíssimo valor para a tarefa
inesgotável de abertura do espírito a novas culturas e de expansão do horizonte
cultural dos juízes, bem como para manter a abertura das possibilidades
interpretativas da norma constitucional, fornecendo meios para sua própria
evolução, o que permite concluir que, ainda que o juiz encontre inspiração no
direito estrangeiro, no Brasil as razões persuasivas continuam atadas a fontes
domésticas, de maneira que os argumentos provenientes da comparação influenciam
a interpretação da lei constitucional, mas não de maneira a serem valorados
como verdadeiramente decisivos para concretização da Constituição no âmbito
judicial.
Quando manejado sabiamente pelas Cortes
constitucionais, o argumento comparado põe-se em confronto com a realidade
própria de cada país, mesmo no caso em que o direito estrangeiro detém
supedâneo normativo para servir à interpretação/aplicação dos direitos
fundamentais, como no caso sul-africano. Apesar disso, vimos como o recurso à
comparação é mal visto nos Estados Unidos, enquanto nos demais contextos, até mesmo
no Brasil, os cultores da ciência jurídica parecem não se opor ao seu uso.
É certo também que o desenvolvimento dos meios de
comunicação, trazendo consigo o rápido acesso a sentenças estrangeiras pela
rede mundial de computadores, inclusive com mecanismos de pesquisa, facilitou
sobremaneira a possibilidade de acesso a tais decisões, fazendo possível a
elevação do número de casos e direitos estrangeiros trabalhados nas decisões
dos tribunais. O amplo e cada vez mais considerável uso do argumento comparado
pelos tribunais constitucionais dos países ao redor do mundo parece ser
corolário do Estado constitucional cultural, forma de Estado que - em sequência
natural do Estado de Direito e do Estado Social - emerge primeiramente no
âmbito da experiência constitucional europeia no período do pós-guerra e se
afirma em um contexto que conduz ao nascimento, em sucessão temporal, depois de
1945, das Constituições francesa, italiana, alemã, portuguesa, espanhola e,
mais recentemente, de vários países do leste europeu, sendo que todas essas se
juntam às de outros países, a exemplo da Constituição norte-americana e da
brasileira, assinalando uma conotação comum, segundo um modelo pautado no
liberalismo democrático, na tutela dos direitos fundamentais e da liberdade.
Nesta senda, a comparação jurídica e cultural em
tempos de Estado constitucional serve para "abrir a mente e o
espírito" e o horizonte cultural do magistrado encarregado de zelar pela
Constituição, bem como para franquear a abertura das possibilidades de interpretação
e aplicação da norma constitucional, fornecendo meios para sua própria
evolução. Importante também é a consideração da tendência de que nesse tipo de
Estado constitucional certos valores, particularmente no campo dos direitos
humanos, têm se afirmado em nível transnacional, quando não global. Nesse
sentido, a comparação operada pela jurisdição constitucional contribui muito
para o fenômeno da extensão e da uniformização da garantia dos direitos
fundamentais, e, ainda que a comparação forneça parâmetros para aprofundar os
argumentos trabalhados em um determinado tipo de conflito de direitos
fundamentais, que muitas vezes são comuns à sociedade ocidental como um todo, é
prematuro afirmar que haja, neste momento, tendência à convergência jurisprudencial.
Enfim, vimos como é exigível do jurista de hoje um
esforço - consciente - de compreensão das possibilidades fornecidas pela
comparação jurídica, o que ilide qualquer tentativa desavisada de querer
"parar o vento com as mãos" e negar a importância dela para a própria
evolução constitucional.
NOTAS
1
À exceção do Supremo Tribunal Federal, em relação ao qual a pesquisa
concentrou-se no seu sítio virtual na rede mundial de computadores, haja vista
a tentativa, sem sucesso, de encontrar discussões mais desenvolvidas em textos
científicos, em todos os demais tribunais abordados neste estudo as decisões
analisadas foram obtidas com apoio na doutrina, nomeadamente a obra coletiva Corti
nazionali e comparazione giuridica, de Ferrari e Gambaro, a qual serviu
também de estímulo científico para aproximar o temário da comparação de
direitos à realidade brasileira.
2
Não se trata, como visto, de uma abordagem àquilo que a comparação fornece como
metodologia de estudo da disciplina direito constitucional, inquestionavelmente
importante e frutífera, mas sim no que propõe - e nas dúvidas que alimenta - em
relação à aplicação de decisões e outros juízos às decisões judiciais dos
Tribunais constitucionais.
3
É preciso reconhecer a histórica problemática acerca da denominação desse ramo
do saber jurídico. Neste estudo, adota-se a expressão direito comparado, sem
prejuízo do uso de outras ao longo do texto e sem a intenção de tomar partido
da discussão que há tempos ocupa os cultores da comparação jurídica, tal como
relatado no estudo de Dantas (1997).
4
Está registrado na obra histórica de Sarfatti (1945, p. 215) o objetivo do
direito comparado voltado para a unificação internacional do direito privado.
No mesmo sentido, Dantas (1997, p. 243 e s.) mostra que a preocupação com a
unificação do direito era frequente na discussão dos comparativistas no tocante
à função da disciplina.
5
Dantas (1997, p. 242) acompanha Caio Mário da Silva Pereira para afirmar que o
direito comparado não é somente um método, mas ciência.
6
Miranda (2002, p. 651) ensina que "uma clara consciência do interesse ou
do interesse específico da interpretação constitucional não surgiu (como não
surgiria acerca de outras questões) durante a maior parte do século XX. Apareceu
mais tarde, quando [...] se avançou no esforço de construção dogmática dos
sistemas constitucionais".
7
Todos esses países conectam-se ao "conceito ocidental de
Constituição" (SOARES, 1986), resultado da evolução de uma concepção -
ainda que meramente ideal, o que não significa desprestígio à sua função
paradigmática - de "Constituição moderna", cujas dimensões fundamentais
incorporam a) a ordenação jurídico-política plasmada num documento escrito; b)
declaração, nessa carta escrita, de um conjunto de direitos fundamentais e suas
garantias; c) organização do poder de forma a limitá-lo e moderá-lo. A recolha
dos ordenamentos jurídicos deste estudo, apesar de denotar certa aleatoriedade,
seguiu limitada por essa concepção paradigma. Além disso, também contribuíram o
recente destaque conferido pela doutrina ao texto constitucional sul-africano,
a notória importância do constitucionalismo norte-americano e a aproximação
científica do autor à ciência jurídico-constitucional lusitana.
8
Aprovada a Lei do Tribunal Constitucional, Lei nº 28/82, somente em 31 de maio
de 1982 ano que o Tribunal viria a proferir o seu primeiro acórdão.
9
Influenciado pelos estudos da doutrina portuguesa, que sempre se manteve atenta
aos desenvolvimentos científicos e doutrinários das principais tradições
jurídicas ocidentais, bem como pela própria origem acadêmica de grande parte
dos juízes constitucionais.
10
Cfr. Romano Orrú (2006, p. 11), esse ordenamento é visto como "poroso e
particularmente exposto aos influxos externos".
11
O artigo 16, item 2, da Constituição da República Portuguesa afirma que:
"Os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais
devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos
Direitos do Homem". No nosso entender, tal exigência demonstra a abertura
do Estado português à comparação, mas não importa na consideração obrigatória
desta como um dos seus pressupostos. Também neste aspecto cumpre assinalar que
o Código Civil português, em seu artigo 9º, reproduz preceito atinente à
interpretação da lei voltado somente à busca do pensamento legislativo.
12
Orrú (2006, p. 22 e s.) avalia o modus procedendi dos juízes portugueses
no trato do argumento comparado. Algumas vezes a atenção ao direito comparado
se manifesta de forma fugaz e sumária (mera citação), outras de modo analítico
(a fim de explicar os possíveis inputs judiciário, normativo e doutrinário,
a exemplo do Acórdão nº 288/98, ou quando a maior parte da motivação vem
explicitamente composta pelo Direito comparado, como o Acórdão nº 479/94). Às
vezes, há um manejo mais cuidadoso do TCP, a partir da seleção de elementos
externos com quadro constitucional semelhante ao português. Há casos em que o
TCP não demonstra muita exigência técnica, tal como no Acórdão nº 589/04, no
qual, sem a mínima prudência classificatória ou justificação teórica, mencionou
normas da Carta canadense, da Espanha, Rússia, Bolívia, Itália, Brasil, Chile,
Bélgica e Finlândia (ORRÚ, 2006, p. 24-5) acerca da liberdade de associação.
13
É o que se confirma a partir da transcrição de parte do acórdão Acórdão nº
121/79, p. 12: "tendo presente os dados doutrinais e de direito comparado
carreados para os autos, importa decidir a questão de constitucionalidade
suscitada pelo recorrente".
14
Acórdão nº 301/06.
15
É o que se verifica da leitura do Acórdão nº 607/03, verbis:
"Considera-se não ser despiciendo dedicar alguma atenção ao tratamento
jurisprudencial e dogmático que os casos diários mereceram na Alemanha,
referindo-se em particular a discussão do problema no âmbito da jurisdição
constitucional germânica, dado reconhecer-se, com fundamento, a 'afirmação da
proximidade' ou 'a sobreposição substancial' entre o direito português e o
alemão".
16
Advoga-se que a Constituições de Brasil e de Portugal dividem a mesma
filosofia.
17
A verificação do uso intenso do direito internacional pelo Tribunal
Constitucional português e nos demais surgiu como resultado não almejado -
embora bem-vindo - da pesquisa. Com efeito, a carga normativa do Direito
internacional demandaria investigação própria, muito além dos limites do
presente estudo, que foi voltado à interpretação-concretização do texto
constitucional mediante aplicação de um método - ou disciplina - específico, o
direito comparado. Trata-se, a rigor, de campos de estudo distintos entre si,
com efeitos também particulares em relação aos sistemas jurídicos.
18
Slaughter (2003, p. 199) observa que a Corte Suprema estadunidense, acostumada
em ser "source" para tribunais estrangeiros, caminhou a partir
da década de 1980 no sentido de se tornar também "borrower".
19
521 US 898, (1997), nº 95-1478 e nº 95-1503.
20
Segundo Delahunty e Yoo (2005, p. 292 e s.), o Juiz Breyer é explícito defensor
do uso do direito estrangeiro, assim como os juízes Stevens, O'Connor e
Ginsburg.
21
A teorização se deve a Sheppele (2003), no estudo acerca das influências
constitucionais cruzadas a partir de modelos negativos.
23 Em primeiro lugar, a "Reaffirmation of American Independence
Act" (H.R.Res. 97, 109th Congr. 2005) e depois o projeto denominado
"Constituition Restoration Act" (S.520, 109th Congr. 2005 e H.R.
1070, 109th Congr. 2005), este último prevendo até o impeachment no caso
de descumprimento.
24 "When interpretating the Bill of Rights, a court, tribunal or
forum: (a) must promote the values that underlie an open and democratic society
based on human dignity, equality and freedom; (b) must considerer international
law; and (c) may consider foreign law."
25
Decidiu-se que o ônus da prova seria da acusação, e não do acusado, tendo o
Tribunal observado que a jurisprudência colacionada à decisão, oriunda da Corte
Suprema dos Estados Unidos, da Corte canadense, do Tribunal Europeu dos
Direitos Humanos, entre outros, provém de tribunais de sociedades abertas e
democráticas e estava a indicar que o ônus reverso no caso debatido não era de
forma alguma incomum e não era, necessariamente, inconstitucional.
26
Rinella (2006, p. 401) observa que no caso "Zuma versus Estado" pode
ter havido uma certa vinculação, mas isso não se constituiu em tendência no
Tribunal sul-africano.
27
A superação do período de déficit democrático trouxe consigo a dúvida
acerca da capacidade dos magistrados de assimilarem prosperamente o cumprimento
da nova cultura constitucional, o que também foi sentido em Itália, Portugal,
Alemanha, entre outros países, suscitando, por exemplo, o tema da
"Constituição não atuada".
28
Observa Rinella (2006) que o objetivo do Tribunal não é imitar um modelo
estrangeiro de proteção dos direitos fundamentais, mas fomentar a construção de
uma democracia em que os valores constitucionais são estabelecidos e interpretados
à luz do seu peculiar sistema jurídico, da história e das condições sociais que
constituem o pano de fundo da Constituição da África do Sul e que devem ser
constantemente mantidos em conta pelo mesmo.
29
Segundo Rinella (2006), muitos dos juízes que já passaram pelos quadros
judicantes da Corte sul-africana completaram seus períodos de estudo jurídico
em universidades de outros países, além de participações em seminários e outros
eventos que facilitaram a ocorrência da aludida "attrezzatura culturale".
30
A recolha dos julgados que substancializaram a presente análise foi feita
através da rede mundial de computadores no sítio do próprio Tribunal. A
pesquisa, realizada no mês de janeiro de 2010, teve como parâmetro as seguintes
expressões completas e entre aspas: "direito comparado" (sessenta
resultados), "argumento comparado" (nenhum resultado),
"comparação jurídica" (nenhum resultado), "comparação de/entre
direitos" (nenhum resultado) e "direito estrangeiro" (oito resultados).
Além disso, foram compulsados os votos e acórdãos dos casos mais polêmicos
julgados recentemente pelo STF.
31
A análise quantitativa do resultado da pesquisa indica que são esses os
magistrados em exercício que mais comumente fazem uso da comparação em seus
votos. É interessante perceber que a atenção constante à comparação entre
direitos parece se conectar às respectivas formações acadêmicas dos
magistrados, uma vez que todos os ministros mencionados como mais afeitos à
comparação têm anotados em seus currículos publicados no sítio do Tribunal
momentos de vivência cultural e jurídica em outros países.
32
Destaca-se entre os resultados da consulta textual ao sítio do STF o grande
emprego da comparação no julgamento de ações diretas de inconstitucionalidade,
as quais representam cerca de 40% dos casos apurados, seguido pelas questões de
ordem em ação penal, Habeas Corpus, mandados de injunção e outros.
33
A decisão mais antiga apurada pela pesquisa foi julgada em 1977, pelo então
ministro Dajci Falcão, a propósito de um pedido de extradição formulado pelo
Governo Suíço contra Raphael Patrola (Pedido de Extradição nº 336). Por outro
veio, a maioria das ementas respondidas pela pesquisa textual datam de 1999 em
diante e abordam os casos mais polêmicos decididos pelo STF, a exemplo da
questão dos fetos anencéfalos, poderes da fiscalização tributária e policial em
cotejo com os direitos e as garantias individuais e, mais recentemente, o
julgamento da ação popular sobre a demarcação da terra indígena Raposa Serra do
Sol, julgado em 19/03/2009.
34
Mandado de Injunção nº 708/DF, julgado em 25/10/2007.
35
Habeas Corpus nº 82424/RS, julgado em 17/09/2003.
36
Entre outros motivos, a citação dos referidos elementos do direito estrangeiro
serviu para a conclusão de que o conceito de racismo previsto na Constituição
Federal de 1988 contempla a prática de antissemitismo, conclusão essa estampada
no voto-vista do ministro Gilmar Mendes. É provável que tenha sido este o caso
em que o elemento comparado se fez mais presente na história constitucional
brasileira recente.
37 Todas as decisões indexadas pela
instituição e publicadas no sítio virtual são acompanhadas de um campo
específico junto à ementa denominado "doutrina", no qual são citadas
as obras científicas que confluíram para o julgamento. Esse instrumento, além
de haver tornado menos árdua tanto a pesquisa quanto a apuração dos resultados,
permitiu obter um resultado quantitativo acerca da origem dos estudos sobre os
vários direitos "nacionais" que mais marcadamente assomam para as
decisões da Corte brasileira.
38
Qualitativamente, a análise dos textos suscitados nos julgamentos dos ministros
brasileiros demonstra que a maioria das citações se refere a obras que abordam
a problemática dos direitos fundamentais e, em maior parte, sobre a Teoria da
Constituição, além de obras sobre teorias gerais do direito e direito penal.
39
Häberle (2003, p. 125) fala em equilíbrio, no tempo, entre continuidade e
mudança, entre estabilidade e flexibilidade, a permitir a conservação do Estado
constitucional no curso temporal.
40
Pensamos também na revisão das funções da Constituição realçada por Canotilho
(2003, p. 1.450), mirando a função de inclusividade multicultural no bojo de
uma sociedade multicultural.
41
Tradução livre: "Não existe norma jurídica senão norma jurídica
interpretada".
42
É importante destacar que até a noção do que é clássico é relativizada na
sociedade aberta de intérpretes: "Nosotros somos el sujeto de referencia
de los clásicos" (HÄBERLE, 2003, p. 48).
43
Termo do idioma espanhol. Em tradução livre: aspas.
44
Referimo-nos ao exame por nós levado a efeito da jurisprudência do STF que
transcorreu apenas para fins demonstrativos de uma tendência.
45
Vide FERRARI e GAMBARO, Corti nazionali e comparazione giuridica (Roma:
Edizioni Scientifiche Italiane, 2006).
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