Blog DIREITO
LATO SENSU, de autoria de Superdotado Álaze Gabriel.
Disponível
em http://direito-lato-sensu.blogspot.com.br/
Autoria*:
Oscar
Vilhena Vieira - Doutor e Mestre em Ciência
Política pela Universidade de São Paulo (Brasil) e Mestre em Direito pela
Universidade de Columbia (Nova Iorque, EUA). Vieira é Professor de Direito
Constitucional da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e Coordenador
do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento e Direitos Humanos nessa mesma
instituição (Brasil). Ele também ocupa o cargo de Diretor Jurídico na Conectas
Direitos Humanos, organização não governamental de direitos humanos com sede no
Brasil.
RESUMO
De que maneira a profunda e persistente
desigualdade socioeconômica afeta a integridade do Estado de Direito? O
principal objetivo deste artigo é procurar entender os efeitos, no sistema
jurídico, da polarização entre pobreza e riqueza, especialmente com relação a
uma das idéias centrais do Estado de Direito: a noção de que as pessoas devem
ser tratadas de maneira imparcial pela lei e por aqueles encarregados de sua
implementação. O argumento principal proposto aqui é que a exclusão social e
econômica, decorrente de níveis extremos e duradouros de desigualdade, destrói
a imparcialidade da lei, causando a invisibilidade dos extremamente
pobres, a demonização daqueles que desafiam o sistema e a imunidade
dos privilegiados, aos olhos dos indivíduos e das instituições. Em suma, a
desigualdade socioeconômica extrema e persistente corrói a reciprocidade, tanto
em seu sentido moral quanto em seu interesse mútuo, o que enfraquece a
integridade do Estado de Direito.
Esse artigo também será publicado em Thomas Pogge (ed.). A Human Right to be Free from Poverty: Its Role in Politics. Oxford: Oxford University Press, 2008.
Esse artigo também será publicado em Thomas Pogge (ed.). A Human Right to be Free from Poverty: Its Role in Politics. Oxford: Oxford University Press, 2008.
INTRODUÇÃO
De que maneira a profunda e persistente
desigualdade socioeconômica afeta a integridade do Estado de Direito? O
principal objetivo desse artigo é procurar entender os efeitos, no sistema
jurídico, da polarização entre pobreza e riqueza, especialmente com relação a
uma das idéias centrais do Estado de Direito: a noção de que as pessoas devem
ser tratadas de maneira imparcial pela lei e por aqueles encarregados de sua
implementação. O argumento principal proposto aqui é que a exclusão social e
econômica, decorrente de níveis extremos e duradouros de desigualdade, destrói
a imparcialidade da lei, causando a invisibilidade dos extremamente
pobres, a demonização daqueles que desafiam o sistema e a imunidade
dos privilegiados, aos olhos dos indivíduos e das instituições. Em suma, a
desigualdade socioeconômica extrema e persistente corrói a reciprocidade, tanto
em seu sentido moral quanto como interesse mútuo, o que enfraquece a
integridade do Estado de Direito.
Esse artigo está dividido em quarto partes seguidas
de algumas conclusões. Na primeira parte, revisarei as concepções substantiva e
formalista do Estado de Direito e procurarei entender a razão pela qual esse
ideal tem sido quase unanimemente defendido em nosso tempo. O desafio na
segunda parte é explicar por que os Estados e as pessoas agiriam em
conformidade com os parâmetros do Estado de Direito discutidos na primeira
parte. A terceira levará em consideração o impacto da desigualdade extrema e
persistente sobre o Estado de Direito. Nesta parte, irei apoiar-me na
familiaridade que possuo com a experiência brasileira – e essa não é uma
escolha completamente arbitrária. Embora o Brasil ostente um sistema jurídico
razoavelmente moderno e um judiciário independente, em conformidade com muita
das chamadas virtudes do Estado de Direito, o país possui um histórico maculado
no que diz respeito à sua adequação ao Estado de Direito, especialmente na
maneira pela qual a lei é implementada. Uma explicação para isso é a
desigualdade. Eu espero que a referência ao Brasil não prejudique minha
intenção de formular algumas conclusões gerais acerca da relação entre Estado
de Direito e desigualdade. A última parte não será pessimista, no entanto.
Focarei em como um Estado de Direito, mesmo incompleto, pode ser utilizado e
desafiado a fortalecer os invisíveis, humanizar os demonizados e
trazer os imunes de volta ao domínio do Direito.
O CONCEITO DE ESTADO DE DIREITO
A idéia de Estado de Direito tem sido quase
unanimemente defendida em nossos dias. Ela tem servido como um ideal extremamente
poderoso para aqueles que têm lutado contra o autoritarismo e o totalitarismo
nas duas últimas décadas e é considerada por muitos como um dos principais
pilares de um regime democrático.1
Para os defensores de direitos humanos, o Estado de Direito é visto como uma
ferramenta indispensável para evitar a discriminação e o uso arbitrário da
força.2
Ao mesmo tempo, a idéia de Estado de Direito, ao ser renovada pelos libertários
como Hayek em meados do século XX, recebeu apoio fervoroso das agências
financeiras internacionais e instituições de auxílio ao desenvolvimento
jurídico, como um pré-requisito essencial para o estabelecimento de economias
de mercado eficientes.3
Do outro lado do espectro político, até mesmo os marxistas, que viam
antigamente o Estado de Direito como um mero instrumento superestrutural,
voltado à manutenção do poder das elites, começaram a vê-lo como um bem humano
incondicional.4
Seria difícil encontrar qualquer outro ideal político louvado por públicos tão
diversos. Porém, a questão é: estamos todos defendendo a mesma idéia?
Obviamente, estão sendo empregados tanto conceitos diferentes de Estado de
Direito, quanto virtudes ou características distintas oriundas de uma concepção
mais abstrata do tema.
O conceito clássico de Estado de Direito foi
submetido a uma severa reavaliação nas duas primeiras décadas do último século.
Pensadores, como Max Weber em Economia y Sociedad5,
alertaram-nos acerca do processo de desformalização do Direito como
conseqüência das transformações na esfera pública. Os anos que se seguiram após
os trabalhos de Weber foram marcados por uma tensa luta política e intelectual
sobre a capacidade do Rechtsstaat de se adequar aos novos desafios
apresentados pela Constituição social-democrata de Weimar. Essa luta pode ser
vista no debate entre conservadores como Carl Schmitt e social-democratas
representados por Franz Neumann6.
Hayek responde a essas perspectivas céticas sobre o Estado de Direito em seu
influente O Caminho da Servidão, de 1944.7
Para Hayek, a intervenção estatal na economia e o
crescente poder discricionário dos burocratas de estabelecer e buscar objetivos
sociais ameaçam a eficiência econômica; como conseqüência das transformações
nas funções do Estado, houve um processo de declínio da condição do Direito
como instrumento substantivo na proteção da liberdade. A noção de que o Estado
não tem apenas a obrigação de tratar os cidadãos de maneira igual perante a
lei, mas também o dever de assegurar a justiça substantiva foi acompanhada pelo
argumento, proposto por novos teóricos jurídicos, de que o conceito tradicional
de Estado de Direito se tornou incompatível com a nova realidade. Diferentes
teorias jurídicas como o positivismo, o realismo jurídico ou a jurisprudência
de interesses construíram uma versão formal do Direito, liberando o Estado das
inerentes limitações impostas por uma concepção substantiva.
Para superar tal situação de "opressão",
na qual o Estado pode exercer coerção sobre seus cidadãos – através de atos
normativos – sem a necessidade de justificar suas ações em uma lei abstrata e
geral, seria necessário retornar às origens do Estado de Direito. Para isso,
Hayek revisitou a história e formulou uma lista de elementos normativos
essenciais do Estado de Direito, visto como instrumento par excellence para
assegurar a liberdade. De acordo com essa versão, ele não pode ser comparado ao
princípio da legalidade desenvolvido pelo direito administrativo, porque o
Estado de Direito representa uma concepção material referente ao que o Direito
deveria ser. Essa concepção material o configura como uma doutrina meta legal e
um ideal político, que serve à causa da liberdade, e não como uma mera concepção
de que a ação governamental deva estar de acordo com as normas. O Estado de
Direito deveria ser formado, para Hayek, pelos seguintes elementos: (a) a lei
deveria ser geral, abstrata e prospectiva, para que o legislador não pudesse
arbitrariamente escolher uma pessoa para ser alvo de sua coerção ou privilégio;
(b) a lei deveria ser conhecida e certa, para que os cidadãos pudessem fazer
planos – Hayek defende que esse é um dos principais fatores que contribuíram
para a prosperidade no Ocidente; (c) a lei deveria ser aplicada de forma
equânime a todos os cidadãos e agentes públicos, a fim de que os incentivos
para editar leis injustas diminuíssem; (d) deveria haver uma separação entre
aqueles que fazem as leis e aqueles com a competência para aplicá-las, sejam
juízes ou administradores, para que as normas não fossem feitas com casos
particulares em mente; (e) deveria haver a possibilidade de revisão judicial
das decisões discricionárias da administração para corrigir eventual má
aplicação do Direito; (f) a legislação e a política deveriam ser também
separadas e a coerção estatal legitimada apenas pela legislação, para prevenir
que ela fosse destinada a satisfazer propósitos individuais; e (g) deveria
haver uma carta de direitos não taxativa para proteger a esfera privada.8
Dessa maneira, a concepção de Estado de Direito
defendida por Hayek engloba uma visão substantiva do Direito, uma noção estrita
da separação de poderes e a existência de direitos liberais que protejam a
esfera privada, moldada assim para servir como um instrumento de proteção da
propriedade privada e da economia de mercado. O maior problema com essa
concepção é que, através dela, o Estado de Direito se torna refém de um ideal
político particular.
Em reação a esse e a outros tipos de formulações
substantivas do Estado de Direito, como aquela mais direcionada ao aspecto
social que resultou do Congresso de Delhi, organizado pela Comissão
Internacional de Juristas em 1959, Joseph Raz propõe uma concepção mais
formalista, que evitaria a confusão entre diversos objetivos sociais e
ideológicos e as virtudes intrínsecas do Estado de Direito. Para ele, "se
o Estado de Direito for um Estado governado por boas leis, então explicar a sua
natureza é difundir uma filosofia social completa. Porém, dessa maneira, o
termo perde qualquer utilidade".9
Para Raz o Estado de Direito em seu sentido amplo
"significa que as pessoas devem obedecer às leis e serem reguladas por
elas. Porém, em uma teoria política e jurídica, ele deve ser lido de uma
maneira mais estrita, no sentido de que o governo deve ser regulado pelas leis
e sujeito a elas".10
A construção de Raz requer que as leis devam ser entendidas como regras gerais,
para que possam efetivamente direcionar ações. Nesse sentido, o Direito não é
apenas um fato decorrente do poder, precisa, ao contrário, possuir uma forma
particular. Raz, no entanto, não compartilha da idéia defendida por Hayek,
segundo a qual apenas normas abstratas e gerais podem constituir um sistema de
Estado de Direito. Para Raz, seria impossível governar apenas com normas
gerais; qualquer sistema concreto deve ser composto por normas gerais e outras
específicas, que em contrapartida devem ser consistentes com as primeiras. Para
concretizar o objetivo de um sistema jurídico que possa guiar a ação
individual, Raz cria sua própria lista com os princípios do Estado de Direito,
de acordo com os quais as leis devem ser prospectivas, acessíveis, claras e
relativamente estáveis; a edição de normas específicas deve ser guiada por
outras que sejam, por sua vez, acessíveis, claras e gerais.
Porém, essas regras somente farão sentido se houver
instituições responsáveis pela sua aplicação consistente, a fim de que o
Direito possa se tornar um parâmetro efetivo para guiar a ação individual. A
formulação de Raz requer, desse modo, a existência de um judiciário
independente, porque, se as normas fundamentam racionalmente as ações e o
judiciário é responsável por aplicá-las, seria inútil guiar nossas ações pelas
leis se as cortes pudessem levar em consideração outras razões que não as leis
ao decidir casos concretos. Pela mesma razão, os princípios do devido processo,
como o direito das partes a serem ouvidas e a imparcialidade, devem ser
contemplados. O Estado de Direito também requer que as cortes devam ter
competência para rever atos de outras esferas do governo, a fim de assegurar a
conformidade desses com o Estado de Direito. As cortes devem ser facilmente acessíveis
para que não se frustre o Estado de Direito. Por último, os poderes
discricionários das instâncias responsáveis pela prevenção criminal devem ser
reduzidos no intuito de não se deturpar as leis. Nem o promotor nem a polícia
devem ter a discricionariedade para alocar seus recursos destinados ao combate
ao crime com base em outros fundamentos que não aqueles estabelecidos
legalmente.11
Dentro dessa perspectiva, o Estado de Direito é um
conceito formal de acordo com o qual os sistemas jurídicos podem ser
mensurados, não a partir de um ponto de vista substantivo, como a justiça ou a
liberdade, mas por sua funcionalidade. A principal função do sistema jurídico é
servir de guia seguro para a ação humana. Essa é a primeira razão pela qual as
concepções formalistas do Estado de Direito, semelhantes à formulada por Raz,
recebem amplo apoio de diferentes perspectivas políticas. É extremamente importante
para os governos em geral contarem com um eficiente instrumento para guiar o
comportamento humano. Contudo, servir de ferramenta para distintas perspectivas
políticas não significa que mesmo a concepção formalista de Estado de Direito
seja compatível com todos os tipos de regimes políticos. Por favorecer a
previsibilidade, a transparência, a generalidade, a imparcialidade e por dar
integridade à implementação do Direito, a idéia do Estado de Direito se torna a
antítese do poder arbitrário.12
Dessa maneira, as perspectivas políticas distintas que apóiam o Estado de
Direito têm em comum uma aversão ao uso arbitrário do poder; essa é uma outra
explicação sobre por que o Estado de Direito é defendido por democratas,
liberais igualitários, neoliberais e ativistas de direitos humanos. Apesar de
suas diferenças, eles são todos a favor de conter a arbitrariedade. Em uma
sociedade aberta e pluralista, que ofereça espaço para ideais concorrentes
acerca do bem público, a noção de Estado de Direito se torna uma proteção comum
contra o poder arbitrário.
Existe, no entanto, uma explicação menos nobre para
o apoio amplo ao Estado de Direito que deve ser mencionada. Tendo em vista que
o Estado de Direito é um conceito multifacetado, se usarmos cada um de seus
elementos constitutivos separadamente, eles serão extremamente valiosos na
promoção de valores ou interesses diferentes e muitas vezes concorrentes, como
eficiência de mercado, igualdade, dignidade humana e liberdade. Para aqueles
que defendem reformas de mercado, a idéia de um sistema jurídico que
proporcione previsibilidade e estabilidade é de extrema importância. Para os
democratas, a generalidade, a imparcialidade e a transparência são essenciais
e, para os defensores de direitos humanos, a igualdade de tratamento e a
integridade das instâncias de aplicação da lei são indispensáveis.
Portanto, a leitura parcial desse conceito
multifacetado, feita por concepções políticas distintas, também ajuda a
entender a atração de público tão amplo pelo Estado de Direito. Assim, quando
nós encontramos alguém defendendo o Estado de Direito, precisamos ser
cautelosos e verificar se ele não está apenas exaltando uma das virtudes do
Estado de Direito. Apenas a virtude que justamente sustenta os objetivos
sociais que ele quer promover.
CONFORMIDADE COM O ESTADO DE DIREITO
Um dos problemas fundamentais com as concepções de
Estado de Direito acima mencionadas (tanto a substantiva quanto a formal) é que
elas não nos ajudam a entender quais são as condições externas (sociais,
econômicas e políticas) que favorecem a adesão de um sistema jurídico aos seus
ideais; nem a responder por que tanto os agentes públicos quanto os indivíduos
obedeceriam à lei. Essa é a razão pela qual Maravall e Przeworski demonstram
profundo desapontamento com a espécie de listas formuladas por juristas, como
as discutidas acima: são "implausíveis como descrição" e
"incompletas como explicação".13
Dessa maneira, o primeiro desafio que aqui se coloca é buscar compreender quais
condições ou mecanismos incentivam a obediência ao Estado de Direito. Por que
qualquer governo com controle indisputável sob os meios coercitivos se
submeteria ao Estado de Direito? Além disso, por que qualquer um de nós deveria
respeitar a lei? Deixe-me começar pela primeira questão.
POR QUE UM GOVERNANTE RESPEITARIA A LEI?
De acordo com Holmes, a principal tese de Maquiavel
sobre esse assunto é que "os governos devem ser levados a tornar o seu
próprio comportamento previsível em busca de cooperação. Os governos tendem a
se comportar como se eles fossem 'limitados' pela lei, ao invés de usar a
imprevisibilidade da lei como uma vara para disciplinar as populações a eles
submetidas, [...] porque eles possuem objetivos específicos que requerem um
alto grau de cooperação voluntária [...]".14
Assim, a lei seria usada com parcimônia pelo governante a fim de obter
cooperação por parte de grupos específicos dentro da sociedade, o que ele não
teria sem mostrar algum respeito pelos seus interesses. Na medida em que o
governante precisar de mais apoio, mais grupos serão incluídos na proteção
proporcionada pela lei e, em troca desse apoio, eles se beneficiarão do
tratamento previsível do governante.
Liberalismo e democracia, no entanto, requerem a
expansão do Estado de Direito para todos. Foi assim, de fato, que o Estado de
Direito se desenvolveu desde a Idade Média, através da expansão de privilégios
a diferentes grupos. A Magna Carta é talvez o primeiro símbolo desse processo
de expansão de direitos legais que culminou na Carta Internacional de Direitos
Humanos no século XX e nas cartas de direitos das democracias constitucionais
contemporâneas.
A distribuição de direitos, capaz de fortalecer as
pessoas, torna-se, assim, o fator chave para obter cooperação. T.H. Marshal, em
seu clássico Cidadania, Classe Social e Status (1967)15
proporciona uma clara descrição da evolução da cidadania nos países ocidentais,
através do processo de inclusão do povo na proteção proporcionada pela lei. Tem
sido através do embate político que novos grupos conseguem obter status jurídico
por intermédio dos direitos civis, políticos, sociais e econômicos, recebendo,
como contrapartida por sua cooperação, diferentes níveis de inserção no Estado
de Direito. Assim, mesmo que nós não possamos confundir o Estado de Direito com
os direitos dos cidadãos, é muito difícil historicamente dissociar o processo
de expansão da cidadania da ampliação do Estado de Direito. A generalidade e a
aplicação imparcial da lei, como virtudes internas do Estado de Direito, estão
diretamente associadas à noção de igualdade perante a lei obtida pela expansão
da cidadania.16
Nos regimes democráticos contemporâneos, nos quais
a legitimidade/cooperação depende de um alto grau de inclusão, os direitos
tendem a ser distribuídos mais generosamente. No entanto, mesmo em um regime
democrático, o governo não necessita de cooperação de todos os grupos em termos
iguais, o que faz com que não haja incentivo para tratar todos igualmente
perante a lei todo o tempo. Mais do que isso, tendo em vista que os grupos
possuem recursos sociais, econômicos e políticos desproporcionalmente
distribuídos dentro da sociedade, o custo para que eles cooperem também é
desproporcional, o que significa dizer que a lei e sua aplicação serão moldadas
conforme diferentes camadas de privilégios.
Isso significa que qualquer aproximação com a idéia
do Estado de Direito depende não apenas da expansão de direitos no papel, mas
também, e talvez de maneira mais crítica, de como esses direitos são
consistentemente implementados pelo Estado. Aqui está o paradoxo enfrentado por
muitos regimes democráticos com altos níveis de desigualdade social. Embora
direitos iguais sejam reconhecidos nos livros, como uma medida simbólica para
obter cooperação, os governos não se sentem compelidos a respeitar as
obrigações correlatas a esses direitos iguais, nos mesmos termos para todos os
membros da sociedade. A partir do momento em que os custos para exigir a
implementação dos direitos através do Estado de Direito são
desproporcionalmente maiores para alguns membros da sociedade do que para
outros, ele se torna um bem parcial, favorecendo essencialmente aqueles que
possuem poder e recursos para conseguir vantagens com isso. Em outras palavras,
a igualdade formal proporcionada pela linguagem dos direitos não se converte em
acesso igualitário ao Estado de Direito ou à aplicação imparcial das leis e dos
direitos.17
Dessa maneira, é possível ter direitos, mas não possuir suficientes recursos
para exigir a sua implementação. Nesse sentido, é apropriado pensar no Estado
de Direito não em termos de sua existência ou inexistência, mas sim em graus de
inclusão. O processo democrático pode expandir o Estado de Direito. Porém,
mesmo os regimes democráticos em sociedades com extremos níveis de
desigualdade, onde as pessoas e os grupos possuem recursos e poder
desproporcionais, o Estado de Direito tende a ser menos capaz de proteger os
economicamente desfavorecidos e de fazer os poderosos serem responsabilizados
perante a lei.
No entanto, o controle do poder estatal e sua
submissão à lei não é apenas uma conseqüência de como o poder está socialmente
distribuído. Nas sociedades modernas, as instituições são criadas para moldar o
comportamento, através de inúmeras formas de incentivo. Instituições também
podem ser desenhadas para controlar umas às outras. Conforme notado por Madison:
quando a ambição é institucionalmente direcionada para restringir a ambição, a
possibilidade de ter o governo sob controle aumenta.18
Os momentos fundacionais se tornam assim muito importantes. Quando poderes
sociais concorrentes não são suficientemente fortes para superar uns aos
outros, eles tendem a se comprometer com a criação de estruturas políticas
dotadas de poderes fragmentados e contrapostos. Os grupos menos favorecidos
podem se beneficiar do resultado desses conflitos de elite. Essa é a lógica
básica que informa o constitucionalismo moderno.
Contudo, o Estado de Direito tem como objetivo mais
do que ter um governo submetido ao controle constitucional e legal. Ele também
procura guiar o comportamento individual e a interação social. Dessa forma,
também é necessário explorar por que as pessoas se comprometeriam com o
Direito. Assim é importante buscar compreender quais são as razões que todos
nós levamos em consideração quando obedecemos ao Direito.
POR QUE AS PESSOAS RESPEITAM A LEI?
Razões cognitivas. O primeiro conjunto de razões
para que haja o cumprimento individual das leis é certamente cognitivo e diz
respeito à capacidade de entendimento dos conceitos jurídicos básicos, como a
noção de regras e direitos. Sem essas concepções culturais básicas, nós não
podemos pensar na possibilidade de respeitar o Direito. Essa não é uma questão
trivial. Em muitas sociedades, a idéia de que as pessoas sejam possuidoras de
direitos iguais e de que o Direito deva ser aplicado imparcialmente é, com
freqüência, contrária à experiência diária. Privilégios existentes, direitos
decorrentes de classe e de hierarquia estão cravados em diferentes sistemas
culturais, fazendo com que a experiência da generalidade do Direito não seja
observável. Além de entender a função estrutural dos conceitos jurídicos
básicos, é importante que as pessoas compreendam as regras fundamentais que
governam suas próprias sociedades e suas obrigações e direitos. Nas sociedades
com alto grau de concentração de pobreza e de analfabetismo, essa condição
quase nunca é satisfeita.19
Razões instrumentais. O segundo conjunto de razões
para a obediência ao Estado de Direito está ligado a nossa habilidade de
raciocinar instrumentalmente, calcular riscos e potenciais benefícios nas ações
que tentamos realizar. As pessoas respeitam as leis e os direitos dos demais
para obter recompensas ou escapar de punições. Se utilizarmos uma visão
instrumental estrita, o respeito ao Direito é reforçado se o seu descumprimento
acarretar claramente um custo para o nosso bolso, liberdade, imagem, estado
psíquico ou integridade, e se respeitá-lo for igualmente benéfico pelas mesmas
razões. Para ter um valor instrumental, respeitar o Estado de Direito deve
beneficiar alguém. Através dessa razão instrumental, os indivíduos buscam
maximizar a sua condição social e econômica. Duas razões instrumentais
sustentam a discussão nesse contexto – o medo da coerção estatal e a
reciprocidade mutuamente vantajosa.
Na medida em que as pessoas temem e esperam punição
ou recompensa estatal, elas tendem a respeitar o Estado de Direito. Essa idéia
poderia ser chamada de argumento hobbesiano. A coerção estatal pode ser
instrumento efetivo para o Estado de Direito em algumas circunstâncias, sendo
também uma condição necessária porque certo grau de comportamento anti-social
irá sempre existir, sem que possa de outra maneira ser controlado. Desse modo,
a impunidade causada pela ineficiência estatal, corrupção ou seletividade
colocam em risco a capacidade de ameaça da coerção como um meio de obter
obediência. Deve ser levado em consideração também que o Estado, em muitas
circunstâncias, deve ser provocado por indivíduos antes de exercer a coerção.
As pessoas devem com freqüência preencher reclamações, ingressar com processos
judiciais, ou apenas informar à polícia certos fatos ilícitos para que o Estado
tome alguma atitude. Dessa maneira, a falta de recursos ou desconfiança das
autoridades pode produzir um forte impacto na mobilização do poder estatal,
permitindo àqueles que não obedecem à lei agir impunemente.
É difícil para qualquer sociedade, no entanto,
arcar com o custo do grau de coerção estatal necessário para assegurar a
obediência aos parâmetros legais. Imagine, por exemplo, que a ameaça de uma
multa ou prisão fosse a única razão pela qual as pessoas deixariam de
ultrapassar o sinal vermelho no semáforo de trânsito. A experiência dos Estados
totalitários mostra que conseguir obediência pela constante vigilância é algo
extremamente caro e, mesmo se os custos pudessem ser suportados, seria
absolutamente indesejado.
As razões instrumentais para obedecer à lei
deveriam, assim, ser estendidas para além da estrutura coercitiva do Estado. As
pessoas fazem parte de círculos sociais, grupos e comunidades que moldam e
determinam suas ações.20
Portanto, a segunda razão instrumental para respeitar a lei é a expectativa de
represália ou benefício por parte da comunidade ou círculo social ao qual se
pertence ou pelo qual se transita. A fraude no mercado ou no casamento possui
sérias conseqüências. A credibilidade é um bem de grande importância em
qualquer grupo. Perdê-la, por desrespeitar a lei, pode prejudicar a posição
pessoal e diminuir a sua capacidade de entrar em novas relações voluntárias com
outros membros daquele círculo social. Essa é a razão pela qual as pessoas
comumente agem de acordo com o Direito, mesmo na ausência de autoridade
estatal.21
Numa relação mutuamente vantajosa, a regra de ouro
é: não faço aos outros o que eu não gostaria que fizessem comigo. Por não ser
um princípio moral substantivo, essa regra não afirma nem nega a existência de
uma estrutura moral mais profunda. Relações mutuamente vantajosas, no entanto,
podem auxiliar na obtenção da obediência à lei, ainda que em termos frágeis.
Partindo de uma estrutura de vantagem mútua, em circunstâncias de disparidade
de poder, indivíduos têm um incentivo para trapacear: o meu interesse é que
todos os outros cooperem e que eu não o faça.22
Pressões amistosas também podem ser problemáticas, porque o meio social pode
ser influenciado por uma cultura de desrespeito, ou pior, por uma cultura
interna de respeito que desafie o Estado de Direito, como no caso da máfia e de
outras formas de crime organizado. Consequentemente, as razões instrumentais
representadas pela coerção ou por arranjos de vantagem mútua (auto-interessada)
não conseguem explicar totalmente por que as pessoas obedeceriam à lei. Embora
importantes, elas são insuficientes como explicação completa da questão.
Razões morais. A moralidade tem sido negligenciada por muitas
análises recentes da eficácia do Direito, especialmente por aquelas elaboradas
por pensadores jurídicos formalistas ou estudiosos ligados à escolha racional.23
Nesse sentido, o argumento de Lon Fuller de que a reciprocidade moral é um
elemento fundamental para a existência de um sistema legal se torna
particularmente interessante.24
A implementação do Estado de Direito seria consideravelmente mais fácil
naquelas sociedades em que os indivíduos valorizassem os outros e seus
direitos, na mesma proporção em que dessem valor a si próprios. Os direitos
igualmente distribuídos não são um presente dos céus, mas sim uma construção
social; uma decisão feita pela comunidade para valorizar os indivíduos em
termos eqüitativos e para fundamentar o exercício do poder nesses direitos
básicos.25
Isso significa que as decisões coletivas são apenas válidas se derivarem da
vontade de indivíduos autônomos e se eles respeitarem a esfera da dignidade
humana delineada por esses mesmos direitos.26
Esse é um sistema governado por regras, no qual
cada cidadão recebe o status de sujeito de direito, sendo a ele
conferida uma esfera de proteção ao entrar em contato com outros cidadãos e com
o Estado, esse último também subordinado ao princípio da reciprocidade. Nesse
sentido, a autocontenção, que implica respeito pelos direitos dos outros, é a
base fundamental para a generalização de expectativas relacionadas com o
estabelecimento do Estado de Direito. Na medida em que essas expectativas de
respeito aos direitos de todos são generalizadas, a implementação de um
autêntico Estado de Direito também se torna possível.
Pode-se argumentar, no entanto, que a reciprocidade
sempre tem uma origem utilitária, ou seja, que o meu respeito pelos outros não
surge por eu lhes ter concedido algum valor (reciprocidade kantiana), mas sim
pelo fato de que nós firmamos um pacto de não agressão que serve aos nossos
interesses (reciprocidade hobbesiana).27
Como eu havia argumentado acima, existe uma diferença entre a reciprocidade
moral baseada na noção da dignidade humana e a reciprocidade mutuamente
vantajosa, com fundamento no cálculo estratégico. Voltando ao exemplo do
semáforo de trânsito, de acordo com a concepção moral de reciprocidade, eu
pararia meu carro porque acreditaria firmemente que os outros motoristas ou
pedestres têm o mesmo direito que eu possuo de atravessar o cruzamento,
portanto, eu tenho a obrigação correlata de parar. Numa comunidade limitada
pela reciprocidade moral, baseada em direitos, a lei deveria ser mais fácil de
ser implementada. Evidentemente que são inúmeros os empecilhos para se obter ou
construir reciprocidade moral, dificuldades essas que são ainda maiores em
sociedades modernas e consumistas caracterizadas por disparidades socioeconômicas
profundas entre seus membros.
A idéia da moralidade, contudo, poderia ser mais
formal, como a articulada por autores contratualistas como Rousseau. Nesse
caso, a justificativa moral para o respeito à lei não deriva do fato de que um
dado sistema jurídico esteja em harmonia com um conjunto pré-estabelecido de
valores imbutidos nos direitos. O respeito à lei é devido ao fato de que os
próprios cidadãos, sob um procedimento especial justo, produzem leis
reguladoras das relações sociais e da esfera pública. A justiça do procedimento
garantiria que a maximização do auto-interesse fosse neutralizada, assim o povo
poderia deliberar em termos de bem público, o que criaria uma obrigação moral
sobre todos os cidadãos de aceitar esses resultados.28
Se nós seguirmos aqui a teoria de Rousseau acerca do Estado de Direito, não
apenas os procedimentos deveriam ser justos, mas também o resultado deveria ser
veiculado através de meios específicos que assegurassem a imparcialidade. Ou
seja, por meio de leis gerais. Neste sentido é importante enfatizar que a
justiça procedimental não está limitada a processos para edição de leis gerais,
o que seria aceito por todos os participantes no processo político, mas também
trata da maneira pela qual essas leis são implementadas pelo Estado. Novamente
seguindo Rousseau, uma das maiores causas do declínio da democracia é a
distorção na aplicação de leis gerais feita por magistrados que tendem a
defender seus próprios interesses privados em detrimento da vontade geral
expressa pela lei.29
Dessa maneira, a justiça da aplicação das leis é tão importante quanto a
justiça referente a sua produção. Se a aplicação do direito não for levada a
cabo com imparcialidade, de acordo com parâmetros de devido processo
apresentados pela própria lei, o Estado de Direito perderá sua autoridade e,
conseqüentemente, o povo não o verá como uma diretriz aceitável para a sua
ação.30
Para resumir o argumento aqui elaborado, a
obediência individual à lei é sustentada por três conjuntos principais de
razões: cognitiva, instrumental e moral. Conforme tentei argumentar, todas
essas razões são importantes para explicar por que os indivíduos (cidadãos e
agentes públicos) agem em conformidade com o Estado de Direito, mesmo que o
peso de cada razão varie de acordo com a natureza da ação, os atores envolvidos
e as circunstâncias ou os círculos sociais nos quais as ações ocorrem. Para o
propósito deste artigo, a maior questão a ser levantada é como a desigualdade
econômica e social afeta negativamente todos esses mecanismos.
Na seção seguinte, argumentarei que a desigualdade
mitiga a compreensão e o conhecimento de conceitos jurídicos básicos; ela
subverte a aplicação das leis e o uso da coerção; e por fim atua contrariamente
às construções de reciprocidade, tanto em termos morais, quanto em termos de
mútua vantagem. Tendo em mente essas três pré-condições para o Estado de
Direito, tentarei demonstrar que o sistema jurídico brasileiro, que em grande
medida está em conformidade com os elementos que transformam um sistema
jurídico em um Estado de Direito, não viabiliza a imparcialidade ou mesmo a
congruência. Por intermédio do caso brasileiro, tentarei mostrar que um nível
mínimo de igualdade social e econômica entre os indivíduos é crucial para
estabelecer as relações de reciprocidade e para a existência de um sistema de
Estado de Direito.
DESIGUALDADE E ESTADO DE DIREITO
Em 1988, o Brasil promulgou uma nova Constituição, depois
de mais de duas décadas de um regime autoritário. Em reação à experiência do
governo arbitrário e a um passado de injustiça e desigualdades sociais, a nova
Constituição foi tecida sob os princípios do devido processo legal, da
democracia e dos direitos humanos. Sua carta de direitos garante direitos
civis, políticos, sociais e econômicos, incluindo os direitos de grupos
vulneráveis como os indígenas, os idosos e as crianças. Esses direitos recebem
uma proteção especial e não podem ser abolidos nem por intermédio de emendas
constitucionais. O Brasil é hoje parte das principais convenções internacionais
de direitos humanos, e essas têm um efeito direto sobre o sistema jurídico
brasileiro. Portanto, todas as garantias substantivas e procedimentos da Carta
Internacional de Direitos Humanos são parte do sistema jurídico brasileiro.
De acordo com a Constituição Brasileira, a lei é o
único instrumento que pode impor obrigações jurídicas sobre os indivíduos,
sendo que por lei se entendem aqueles atos normativos editados pelo Congresso,
processual e substantivamente, em conformidade com a Constituição. Toda pessoa
é "igual perante a lei", sem qualquer distinção. As leis devem ser
prospectivas, entrando em vigor apenas depois de sua publicação; as leis
retroativas são admitidas apenas quando beneficiarem os indivíduos. Não existem
leis secretas. No caso de emergência, o presidente pode editar medidas
provisórias que têm que ser aprovadas pelo Congresso para se tornarem leis,
dentro de um prazo de sessenta dias, caso contrário elas perderão a eficácia
desde sua edição. Em suma, embora muitas leis brasileiras não passem pelo teste
de generalidade de Hayek, já que muitas delas possuem um propósito específico e
individualizado, assim como muitas leis editadas em qualquer sociedade
pós-liberal, elas certamente seriam compatíveis com a formulação de Raz sobre o
conceito de lei, no qual regras particulares são admissíveis se forem
consistentes com as regras gerais. Também penso que as leis brasileiras, em
geral, podem ser consideradas inteligíveis, não contraditórias e razoavelmente
estáveis.
No que diz respeito às instituições responsáveis
pela aplicação da lei, o sistema jurídico brasileiro poderia também ser
considerado formalmente de acordo com os requisitos propostos por Raz. A
constituição engloba um sistema de separação de poderes, diferenciando entre os
responsáveis pela criação e por aqueles encarregados da aplicação das leis.
Como em muitos sistemas contemporâneos a separação de poderes não é tão rígida
como a proposta no modelo de Montesquieu; o executivo possui poderes de
regulação e de decidir administrativamente em certas áreas. O judiciário possui
um poder extenso de revisão da legislação e de atos administrativos que estejam
em conflito com a Constituição. O legislativo tem mais poder do que
simplesmente editar leis gerais e abstratas; pode controlar o executivo e
investigar más práticas. Porém, certamente, essa noção de separação de poderes
flexível não é mais maleável do que as concepções admitidas em muitas outras
democracias.
Embora, no papel, as instituições pareçam estar em
conformidade com o modelo de Estado de Direito de Raz, o sistema jurídico
brasileiro sofre de uma séria incongruência entre as leis editadas e o
comportamento dos indivíduos e dos agentes públicos.
Há hoje uma consciência crescente de que a lei – e
os direitos – ainda desempenham um papel menor na determinação do comportamento
individual e oficial. De acordo com o Relatório do Latinobarômetro 2005, há uma
grande desconfiança na capacidade do Estado de implementar sua legislação
imparcialmente e, de maneira ainda mais problemática, apenas 21% dos
brasileiros afirmam respeitar as leis.31
De acordo com Guillermo O'Donnell, a maioria de países da América Latina não
foi capaz de consolidar sistemas de Estado de Direito depois da transição para
a democracia. Ele defende que a desigualdade extrema na região é um dos maiores
empecilhos para uma implementação mais imparcial do Estado de Direito. O
Brasil, como um dos mais desiguais países do continente, pode ser caracterizado
como um sistema de não-Estado de Direito em lugar de um sistema onde
haja o domínio da lei.32
A democratização e a liberalização não foram
suficientes para superar os obstáculos que firmemente se opõem à implementação
do Estado de Direito no Brasil. A falha em melhorar significativamente a
distribuição de recursos e reorganizar o tecido social altamente hierarquizado
tem impedido que o Direito exerça seu papel como razão para a ação de diversos
setores da sociedade brasileira. O Brasil é a 8ª maior economia no mundo,
segundo a revisão recente dos números do Produto Interno Bruto brasileiro. No
entanto, detém um dos piores registros de distribuição de riqueza (0,584 índice
de Gini). De acordo com o IPEA, um instituto de pesquisa ligado ao Ministério
do Planejamento, 49 milhões de pessoas são pobres no Brasil e 18,7 milhões
estão em condição de extrema pobreza. Na última década, o 1% mais rico da
população possuiu a mesma riqueza que os 50% mais pobres. Esses, entre muitos
outros indicadores de desigualdade bruta dentro da sociedade brasileira, têm um
efeito forte sobre a atuação das instituições responsáveis pela aplicação da
lei no país. Assim como em muitos países com essas características, o Estado
brasileiro é comumente cortês com os poderosos, insensível com os excluídos e
cruel com aqueles que desafiam a estabilidade social baseada na hierarquia e na
desigualdade.
INVISIBILIDADE, DEMONIZAÇÃO E IMUNIDADE
O argumento central proposto aqui é que a exclusão
social e econômica, oriunda de níveis extremos e persistentes de desigualdade,
causa a invisibilidade daqueles submetidos à pobreza extrema, a demonização
daqueles que desafiam o sistema e a imunidade dos privilegiados, minando a
imparcialidade da lei. Em síntese, a desigualdade profunda e duradoura gera a
erosão da integridade do Estado de Direito. A lei e os direitos sob essas
circunstâncias podem, com freqüência, ser vistos como uma farsa, como uma
questão de poder, para que aqueles que estão entre os mais afortunados possam
negociar os termos de suas relações com os excluídos.
Invisibilidade significa aqui que o sofrimento humano de certos
segmentos da sociedade não causa uma reação moral ou política por parte dos
mais privilegiados e não desperta uma resposta adequada por parte dos agentes públicos.
A perda de vidas humanas ou a ofensa à dignidade dos economicamente menos
favorecidos, embora relatada e amplamente conhecida, é invisível no sentido de
que não resulta em uma reação política e jurídica que gere uma mudança social.
Além da miséria em si e todas as conseqüências
deploráveis na figura de violações de direitos, uma das expressões mais
dramáticas da invisibilidade no Brasil é representada pelos altos índices de
homicídios que vitimizam predominantemente as populações mais carentes. Segundo
o que a Organização Mundial da Saúde demonstrou em seu último relatório sobre
violência, a América Latina possui o pior registro de índices de homicídio no
planeta. O Brasil, um dos países mais violentos da região, acumulou mais de
800.000 mortes por homicídio doloso nas últimas duas décadas.33
Mais pessoas se tornam vítimas de homicídio a cada ano no Brasil do que na
Guerra do Iraque.34
É importante dizer que uma ampla maioria dos mortos é economicamente
desfavorecida, pouco instruída, jovem, masculina, negra e residente na
periferia social brasileira.35
Como cuidadosamente demonstrado por Fajnzylber, Lederman and Loayza,36
há uma forte relação causal entre a desigualdade e os índices de crimes
violentos.
Quando incluímos outros índices de criminalidade e
o fato de que muitas regiões carentes em grandes cidades são controladas pelo
crime organizado, com a complacência dos agentes públicos, estes números nos
transmitem a mensagem de que a lei não é capaz de servir como uma razão para a
ação em muitos meios. E, principalmente, que as restrições legais, como as
apresentadas pelo sistema jurídico penal, são insuficientes para proteger
grupos vulneráveis dentro da sociedade. Níveis obscenos de impunidade, além de
permitir perdas de vidas humanas entre os mais pobres, por não receberem uma
resposta apropriada por parte do sistema jurídico, reforçam a idéia perversa de
que essas vidas não possuem valor. O círculo vicioso de altos níveis de
criminalidade violenta e a impunidade tornam brutais as relações interpessoais
e reduzem a nossa capacidade de compaixão e solidariedade.
Porém, se a invisibilidade pode ser aceita em
sociedades tradicionais, ela se torna um problema muito preocupante num regime
democrático e num contexto consumista. Para muitos que não experimentaram a
sensação de serem tratados com igual consideração e respeito por aqueles
responsáveis por aplicar a lei e pela sociedade em geral, não existe razão
alguma para que ajam em conformidade com o Direito. Em outras palavras, para
aqueles criados como invisíveis em sociedades não tradicionais, há ainda menos
razões morais ou instrumentais para respeitar as leis. A conseqüência é que, ao
desafiar a invisibilidade através de meios violentos, os indivíduos começam a
ser vistos como uma classe perigosa, à qual nenhuma proteção legal deve ser
dada.
Demonização, portanto, é o processo pelo qual a sociedade
desconstrói a imagem humana de seus inimigos, que a partir desse momento não
merecem ser incluídos sobre o domínio do Direito. Seguindo uma frase famosa de
Grahan Greene, eles se tornam parte de uma "classe torturável".
Qualquer esforço para eliminar ou causar danos aos demonizados é socialmente legitimado
e juridicamente imune.
Para compreender a demonização, nós voltamos nossa
atenção às violações maciças de direitos humanos. O uso arbitrário da força
pelos agentes públicos ou outros grupos armados, com a cumplicidade oficial,
contra pessoas demonizadas - como suspeitos, criminosos comuns, presos e mesmo
membros de movimentos sociais - é registrada todos os anos por organizações de
direitos humanos locais e internacionais. A base de dados de impressa do Centro
de Estados da Violência da Universidade de São Paulo registrou mais de seis mil
casos de uso arbitrário e mortal da força por policiais brasileiros de 1980 a
2000. Cada um desses casos resultou em pelo menos uma morte.37
De acordo com o Relatório 2006 da Human Rights
Watch, "a violência policial – incluindo o uso excessivo da força,
execuções extrajudiciais, tortura e outras formas de maus tratos persiste como
um dos problemas mais incontroláveis de direitos humanos no Brasil".38
Em 2006, a polícia, apenas no estado do Rio de Janeiro, matou mais de mil
pessoas.
A tortura permanece uma prática comum tanto nas
investigações policiais, quanto nos métodos disciplinares usados no sistema
prisional e em unidades de internação de adolescentes em conflito com a lei.
Conforme demonstrado pelo antigo Relator Especial sobre Tortura das Nações
Unidas, Sr. Nigel Rodley:
A tortura e outros maus tratos similares estão
distribuídos em uma base esparsa e sistemática na maioria das regiões do país
visitadas pelo Relator Especial [...]. Isso não ocorre a todas as pessoas ou em
todos os lugares; acontece principalmente aos economicamente desfavorecidos,
criminosos comuns negros envolvidos em crimes pequenos ou em tráfico de drogas
de baixa escala [...]. As condições de detenção em muitos lugares são, conforme
francamente informado pelas próprias autoridades, subumanas [...]. O Relator
Especial se sente compelido a comentar que se sentiu, em muitas unidades de
detenção, e especialmente nas delegacias policiais que ele visitou,
sensorialmente agredido de forma insuportável. O problema não foi amenizado
pelo fato das autoridades estarem frequentemente conscientes das condições que
ele iria descobrir e de o terem advertido acerca delas. Ele poderia apenas se
simpatizar com a posição comum que ouviu daqueles que estavam agrupados como
rebanhos no sentido de que "eles nos tratam como animais e esperam que nós
nos comportemos como seres humanos quando sairmos".39
Rodley conseguiu nessa sentença captar a essência
da demonização. Seres humanos tratados como animais não têm razão para
agir de maneira lícita. A demonização, além de ser uma violação à lei em
si, cria uma espiral autônoma de violência e de comportamento brutal de uma
parcela dos indivíduos uns contra os outros e ajuda a explicar não apenas os
índices de homicídio alarmantes, mas também a crueldade extrema de algumas
manifestações de criminalidade.
A imunidade perante a lei, para aqueles que
ocupam uma posição extremamente privilegiada na sociedade, é a terceira
conseqüência da desigualdade profunda que resta ser mencionada aqui. Numa
sociedade altamente hierarquizada e desigual, os ricos e poderosos ou aqueles
agindo em nome deles se vêem como seres acima da lei e imunes às
obrigações correlatas aos direitos das demais pessoas. A idéia de imunidade
pode ser entendida focando-se na impunidade dos violadores de direitos humanos
ou daqueles envolvidos em corrupção, poderosos ou economicamente favorecidos.
A impunidade dos violadores de direitos humanos é
endêmica no Brasil, conforme relatado por grandes organizações de direitos
humanos e também reconhecido pelas autoridades federais. Casos como Vigário
Geral (1993), Candelária (1993), Corumbiara (1995), Eldorado de Carajás (1996)
e Catelinho (2002) ou a reação da polícia aos ataques do PCC (Primeiro Comando
da Capital)40
em 2006 resultou em centenas de vítimas de execuções extrajudiciais, sem maior
esforço para responsabilizar os agentes públicos. Porém, talvez, o caso de
impunidade mais notório com relação a uma violação extrema de direitos humanos
seja o inocentamento do Coronel Ubiratan Guimarães, pelo Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo, em 2005. Ubiratan Guimarães foi o responsável pela
operação policial que resultou na morte de cento e onze presos, conseqüência de
rebelião em uma prisão em 1992. Depois de treze anos ninguém foi responsabilizado
pelo "Massacre do Carandiru". O Governador do Estado e o Secretário
de Segurança Pública da época não foram nem ao menos investigados por seu
envolvimento no incidente, mandando um claro sinal de que as pessoas demonizadas
não estão protegidas pela lei.
A imunidade é também um exemplo seguido pelos
envolvidos em corrupção. Apesar de o Brasil ter recebido uma nota geral
moderada no Índice Global de Honestidade (Global Integrity Index), publicado
todo ano pela Transparência Internacional – ocupando a posição sessenta e dois
entre os países analisados – o desafio ainda não superado da aplicação
imparcial das leis não pode ser ignorado. Nas duas últimas décadas, tem havido
dezenas de escândalos envolvendo políticos, empresários e membros do
judiciário. A enorme maioria deles acaba em impunidade para todos os
envolvidos. Nos últimos dez anos, dos vinte e seis casos de corrupção
envolvendo membros da Câmara dos Deputados que chegaram à Suprema Corte, nenhum
foi considerado culpado. Nesse exato momento, a maioria dos ministros da
Suprema Corte declarou inconstitucional a lei de anticorrupção que permitia
políticos e outros agentes públicos serem investigados por juízes de primeira
instância.41
Se essa decisão for mantida pelo Plenário da Corte, estima-se que mais de
catorze mil processos judiciais contra agentes públicos por todo o país serão
sumariamente extintos, ampliando a percepção de que a lei não se aplica aos
poderosos da mesma maneira que é aplicada contra aqueles destituídos de
direitos.42
A distribuição desproporcional de recursos entre os
indivíduos e grupos dentro da sociedade subverte as instituições, incluindo o
trabalho das instâncias responsáveis pela aplicação da lei. Uma análise do
censo penitenciário brasileiro mostra que apenas os economicamente
desfavorecidos e pouco instruídos são selecionados pelo sistema penal
brasileiro para serem encarcerados. Essa é a conclusão de Glaeser, Scheinkman
and Shleifer, depois de uma análise econométrica do impacto da desigualdade nas
instituições judiciárias: "a desigualdade [...] permite que os riscos
subvertam as instituições políticas, regulatórias e jurídicas da sociedade em
seu próprio benefício. Se a pessoa for suficientemente mais rica do que outra e
as cortes forem corruptíveis, então o sistema jurídico irá favorecer o lado
economicamente mais fortalecido e não o mais justo. Da mesma maneira, se as
instituições políticas e de regulação puderem ser influenciadas pela riqueza e
pela influência, então elas favorecerão o que já está estabelecido, não o mais
eficiente".43
Conforme demonstrado pela experiência do Advogado Geral da União no Brasil
"a corrupção é conseqüência direta da concentração perversa de riqueza no
Brasil".44
A conclusão é que a impunidade, embora seja um fenômeno generalizado no Brasil,
é mais acentuado entre os privilegiados.
A EROSÃO DA AUTORIDADE DA LEI
Como a experiência brasileira demonstra, índices
elevados de desigualdade econômica e social que segregam os economicamente
desfavorecidos de um lado e os favorecidos de outro criam um obstáculo sério à
integridade do Estado de Direito. Por instigar disparidades maciças de poder
dentro da sociedade, a desigualdade coloca os mais carentes em uma posição
desvantajosa, na qual eles são socialmente marginalizados aos olhos daqueles em
melhor condição, bem como aos olhos dos agentes públicos, que são atraídos
pelos interesses daqueles que possuem mais poder dentro da sociedade. Isso cria
uma sociedade hierarquizada, onde os indivíduos de nível inferior não conseguem
atingir um patamar real de completa cidadania e não são totalmente reconhecidos
como detentores de direitos (mesmo que eles o sejam formalmente). A
discriminação, nesse sentido, tende a arruinar os laços de reciprocidade dentro
da comunidade, afrouxando o sentimento de dever moral dos mais poderosos para
com os excluídos. Uma vez que eles não são mais vistos como sujeitos dignos de
valor, não demora muito para que se retire deles o conjunto de direitos de cuja
proteção os outros cidadãos desfrutam. Dessa maneira, torna-se difícil promover
a reciprocidade em uma sociedade onde grandes hierarquias e desigualdades entre
os indivíduos existem. Consequentemente, a lei dificilmente será efetiva como
um instrumento de organização e pacificação social.
A mesma racionalidade pode ser aplicada ao impacto
da reciprocidade auto-interessada na construção de uma ordem social pacífica.
Se os interesses recíprocos dos agentes nas relações de troca, que tornam
possível a produção e a circulação de riqueza dentro de uma comunidade, não
forem satisfeitos; os agentes menos privilegiados dificilmente terão razões
para agir conforme as regras do jogo que sistematicamente prejudicam seus
interesses. De outro lado, os mais privilegiados sentem que não há nenhum
constrangimento social à maximização de seus interesses. Essa situação elimina
incentivos nos dois pólos para obedecer às leis e respeitar os direitos dentro de
uma esfera de relações interpessoais.
Privados de status econômico e social, os
indivíduos invisíveis começam a se socializar de uma maneira que os conduz a
ocupar uma posição de inferioridade em relação aos indivíduos imunes e a
aceitar a arbitrariedade por parte das autoridades públicas. Eles não mais
esperam que seus direitos sejam respeitados pelos outros ou pelas instituições
com responsabilidade em aplicar as leis. Aqueles que reagem a essa posição
degradante se tornam uma ameaça e são tratados como inimigos. Ao mesmo tempo,
os indivíduos imunes não se consideram compelidos a respeitar aqueles que vêem
como inferiores ou inimigos. O mesmo se aplica às autoridades cooptadas. Nesse
caso, um grande número de pessoas está abaixo da lei enquanto um grupo de
privilegiados está acima do controle estatal. Dessa maneira, o Estado, que
supostamente seria o responsável pela utilização dos mecanismos formais de
controle social, em conformidade com a lei e pelos seus meios coercitivos,
começa a reproduzir parâmetros socialmente generalizados. O resultado é que o
Estado se torna negligente com os invisíveis, violento e arbitrário com os
moralmente excluídos e dócil e amigável com os privilegiados que estão
posicionados acima da lei. Assim, mesmo que se tenha um sistema jurídico
adequado às diversas "máximas" relacionadas com a formalidade do
Direito, a ausência de um mínimo de igualdade social e econômica inibe a
reciprocidade, através da subversão do Estado de Direito.
CONCLUSÃO
A conclusão de que a desigualdade profunda e
persistente corta os laços sociais, causando invisibilidade, demonização e
imunidade e prejudicando o respeito aos parâmetros do Estado de Direito não
deve significar que a idéia do Estado de Direito seja inútil nesses meios
sociais. Em regimes democráticos, como o Brasil e muitos outros países em
desenvolvimento, as constituições tendem a ser reativas a um passado de
autoritarismo e de grandes injustiças sociais, na busca de legitimação (para
obter cooperação). Novas constituições normalmente trazem uma carta de direitos
generosa que reconhece direitos civis, políticos e também uma gama extensa de
direitos sociais. Elas também reconhecem os principais elementos institucionais
do Estado de Direito e da democracia representativa. Mais do isso, essas
constituições pós-autoritárias criam novas instituições, como o ombudsmen,
as defensorias públicas, as comissões de direitos humanos e o ministério
público para monitorar o respeito ao Estado de Direito e proteger os direitos
constitucionais dos grupos e indivíduos vulneráveis.
A reconfiguração dos sistemas jurídicos no mundo em
desenvolvimento tem sido também uma conseqüência das pressões da sociedade
civil. Arquitetadas durante a luta contra o governo arbitrário e fortalecidas
durante a democratização, as organizações da sociedade civil são atores
centrais para denunciar abusos, tornar os governos mais responsáveis e propor
políticas alternativas que aliviem os principais problemas sociais. Apenas como
exemplo, o número de organizações sem fins lucrativos no Brasil mais do que
dobrou nas últimas décadas. Das duzentos e setenta mil organizações da
sociedade civil legalmente constituídas no país, quase um quinto tem se
dedicado ao "desenvolvimento e proteção de direitos".45
Dessa maneira, a questão seria como esses novos atores estão usando seu poder
institucional e social para desafiar os sistemas formais de Estado de Direito a
se tornarem mais imparciais, superando sua incapacidade de aplicar a lei em
termos iguais a todos os cidadãos.
Seria ingênuo atribuir aos sistemas jurídicos a
capacidade de produzir a sua própria eficácia, mas seria igualmente equivocado
desconsiderar as potencialidades dos novos atores de promover mudanças sociais
através do emprego de estratégias legais. Mesmo um sistema jurídico frágil pode
prover mecanismos que, se usados a tempo, aumentarão a imparcialidade e o igual
reconhecimento de sujeitos de direitos. As leis de interesse público, a
mobilização (advocacy) em direitos humanos, a litigância estratégica, os
escritórios pro bono e defensorias públicas podem mobilizar os recursos
jurídicos em favor dos interesses menos beneficiados ou contra aqueles
interesses hiper-representados. Esse movimento de dentro do sistema jurídico
para fortalecer os fracos, proteger os demonizados e desestabilizar privilégios
incrustados não deve ser visto, contudo, como uma nova panacéia, mas apenas
como uma parcela de um esforço maior de construção de sociedades mais
recíprocas, nas quais o Estado de Direito tenha melhores condições de
florescer. Essa alternativa é baseada no pressuposto de que o sistema jurídico
ocupa uma posição intermediária especial entre a política e a sociedade. Por
ser um produto das relações sociais e das decisões políticas, os sistemas
jurídicos também são um vetor dessas relações e decisões. A lei não deve apenas
refletir a distribuição de poder dentro da sociedade. Os sistemas jurídicos
modernos são constituídos por privilégios aos mais poderosos, mas também são
construídos através de regras e procedimentos justos que buscam obter
legitimidade e cooperação.
Dessa maneira, a questão para aqueles agentes
sociais e institucionais preocupados com a desigualdade a partir de uma
perspectiva do Estado de Direito é como mobilizar a "moralidade inerente
ao Direito", conforme posto por Fuller, para reduzir a invisibilidade, a
demonização e a imunidade. Como o sistema jurídico melhora a posição daqueles
que estão abaixo da lei, quebra o conforto daqueles que estão acima da lei e
recupera a lealdade daqueles que estão em conflito com a lei?
Advogados e juízes não podem fazer muito para mudar
a sociedade, na verdade eles estão normalmente interessados em reforçar o
status quo. Porém, eles podem ter algum impacto quando desafiados por
outros atores sociais. Como mostra a experiência recente de muitos países
extremamente desiguais como Índia, África do Sul, Brasil e Colômbia, a
comunidade jurídica em geral e as cortes em particular podem, em algumas
circunstâncias, responder às demandas dos menos favorecidos economicamente
quando eles pleiteiam reparações através do sistema jurídico.46
Assim, qualquer esforço para utilizar as leis para melhorar o próprio Estado de
Direito pressupõe que haja por trás uma mobilização social e política. Devido a
algumas características formais igualitárias do Estado de Direito, discutidas
acima, os interesses que seriam sufocados em uma arena puramente política podem
conseguir algum status em um meio-ambiente mais influenciado pelo
Direito. Embora as instituições jurídicas também sejam extremamente vulneráveis
à subversão dos poderosos, elas podem eventualmente produzir curto-circuitos
nos sistemas políticos. Ao traduzir uma demanda social em uma demanda jurídica
nos deslocamos de um ambiente de competição por puro poder para um processo no
qual as decisões devem ser justificadas em termos jurídicos. A necessidade de
justificativa legal reduz o espaço de pura discricionariedade. Nessas
circunstâncias, o sistema jurídico pode dar visibilidade pública, na forma de
reconhecimento de direitos àqueles que são desconsiderados pelo sistema político
e pela própria sociedade. Na mesma direção, a generalidade da lei, a
transparência ou a congruência reivindicada pela idéia de Estado de Direito
pode pôr os privilegiados em uma armadilha, fazendo com que eles retornem ao
domínio do Direito.
No entanto, é importante enfatizar novamente que
esse tipo de ativismo social jurídico deve ser visto apenas como parte de uma
gama muito maior de iniciativas destinadas a construir uma sociedade onde todos
possam ser tratados com igual consideração e respeito.
NOTAS
1.G. O'Donnell, "Why the Rule of Law Matters", Journal of
Democracy, vol. 15, n. 4, 2004, pp. 32-46.
2. O. V. Vieira, "A violação
sistemática dos direitos humanos como limite à consolidação do Estado de
Direito no Brasil" in: Celso Campilongo (org.), Direito, cidadania e
justiça, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.
3. T. Carothers, Promoting the Rule of Law Abroad in Search of
Knowledge, Washington D.C., Carbegie Endowment for International Peace,
2006, pp. 3-13.
6. R. M. Unger, O Direito na
Sociedade Moderna: contribuição à crítica da Teoria Social, São Paulo,
Civilização Brasileira, 1979, pp. 225-228.
9. J. Raz, The Authority of Law: essays on law and morality, New
York, Clarendon Press, 1979, p. 211.
13. J. M. Maravall & A. Przeworski (org), Democracy and the Rule of
Law, Cambridge, Cambridge University Press, 2003, p. 1.
14. S. Holmes, "Lineages of the Rule of Law", in J.M. Maravall
& A. Przeworski, Democracy and the Rule of Law, Cambridge, Cambridge
University Press, 2003, p. 20.
16. R. Bendix, Nation-Building and Citizenship, Los Angeles,
University of California Press, 1964, p. 92.
19. Com relação a isso, é importante
destacar que o grau de conhecimento sobre a constituição política na América do
Sul é muito baixo; apenas 30% dos latino-americanos sabem alguma coisa ou muito
sobre a sua Carta Magna e apenas 34% conhecem os seus deveres e obrigações, Latinobarometro,
2005, p. 14.
21. R. C. Ellickson, Order Without Law: how neighbors settle disputes, Harvard,
Harvard University Press, 1991, pp. 281-283.
23. G. Becker, "Crime and Punishment: An Economic Approach", Journal
of Political Economy, v. 76, 1968, pp. 169-217.
24. L. L. Fuller, The Morality of Freedom, 2nd ed., New
Haven, Yale University Press, 1969, pp. 21-25.
25. J. Habermas, Between Facts and Norms: contributions to a discourse
theory of law and democracy, Cambridge, The MIT Press, 1996, p. 119.
32. G. O'Donnell, "Poliarquias
e a (In)efetividade da Lei na América Latina", Novos Estudos,
Cebrap, 51, 1998, pp. 37-57.
35. S. Adorno, N. Cardia & F.
Poleto, "Homicídio e violação de direitos humanos em São Paulo",
Estudos Avançados, vol. 17, n. 47, 2003, p. 60.
36. P. Fajnzylber, D. Lederman & N. Loayza, "Inequality and
Violent Crime", Journal of Law and Economics, vol. XLV, 2002, pp. 1-40.
39. Nigel Rodley, disponível em :
<www.unhchr.ch/Huridocda/Huridoca.nsf/
0/b573b69cf6c3da28c1256a2b00498ded/$FILE/g0112323.doc>,
acessado em 23 de Abril de 2007.
42. No Brasil, mais de 50% da
população não concorda que a justiça seja feita, mesmo levando muito tempo. Latinobarometro, 2005, 25.
43. E. Glaeser, J. Sheinkman & A. Shleifer, "The Injustice of
Inequality", National Bureau of economic Research, 9150, 2002, p. 3.
46. R. Gargarella (org.), Courts and Social Transformation in New
Democracies: an institutional voice for the poor?, Hampshire, Ashgate
Publishing Limited, 2006.
Original em inglês. Traduzido por Thiago de Souza
Amparo.
*
Gostaria de agradecer a Denise Dora e a Leslie Bethel por todo o apoio recebido
da Fundação Ford, e ao Centre for Brazilian Studies da Universidade de
Oxford, onde me ofereceram um ambiente estimulante para escrever o presente
ensaio em 2007, graças à bolsa de Direitos Humanos de Sergio Vieira de Mello.
Também gostaria de agradecer a Thomas Pogge por ter autorizado a publicação
deste ensaio, escrito previamente para um volume que a UNESCO lhe havia
encomendado, e que a Oxford University Press publicará em 2008. Finalmente,
desejo agradecer a Michael Ravvin por sua leitura profundamente precisa do
presente ensaio e por todas as suas sugestões.